quinta-feira, 29 de julho de 2010

QUEIMADO EM LUME BRANDO

Se não se chamasse José Sócrates, deixaria o assunto morrer por si; o povo que tirasse conclusões sobre a acusação do "caso Freeport", que não inclui o seu nome. Mas como da fama de tipo que não se fica gosta de colher o proveito, converteu a expressão da sua revolta numa solene declaração ao país. Serena, sem ponta de crispação, ao contrário do que sucedeu noutras ocasiões, onde a sua proverbial irritabilidade veio ao de cima.

O que disse merece reflexão. Andou anos a fio sob suspeita de ter favorecido o promotor do centro comercial de Alcochete, quando era ministro do Ambiente. Nunca foi sequer constituído arguido, mas teve de enfrentar os danos colaterais que no terreno político casos desta natureza sempre produzem. Foi alvo de calúnias - o termo é exactamente esse. Não podia simplesmente passar uma esponja sobre a história, como se a condição de figura pública lhe impusesse a lei da rolha.

Estavam nos autos do processo indícios de corrupção, tráfico de influências, branqueamento de capitais e financiamento ilegal de partidos políticos. Seis anos de investigações reduziram tão graves suspeitas à tentativa - tentativa apenas - de extorsão de que são suspeitos dois indivíduos. A montanha, portanto, pariu... um "ratinho". Seria hilariante, se não fosse trágico, porque não foi apenas Sócrates que, ao longo destes anos, andou nas bocas do mundo. Figuras bem menos mediáticas, como o ex-presidente da Câmara de Alcochete, José Inocêncio, também foram arrastadas no turbilhão.

O mais cómodo, na hora do balanço, seria imputar culpas aos suspeitos do costume, um aparelho de Justiça que quando mais lento é, menos justo se torna, expondo-se a fragilidades que só o descredibilizam.

É no entanto preciso reconhecer que, mais uma vez, a Comunicação Social seguiu o filão, de forma tão voraz quanto imprudente. Ajudou - e de que maneira! - ao ribombar dos tambores em torno do primeiro-ministro, assim queimado em lume brando. Chegou-se ao ponto de quase exigir que provasse a sua inocência, subvertendo regras elementares de um Estado de Direito e transformando a presunção de inocência em presunção de culpabilidade.

Vale a pena parar para pensar. José Sócrates pôde dispor do palco mediático para dizer de sua justiça. O Zé da esquina, tantas vezes julgado na praça pública antes de conhecer um juiz, não tem tais meios. Come e cala.