quinta-feira, 24 de junho de 2010

CRENÇAS E FUNERAIS

Nas imagens do funeral de Saramago senti uma incómoda sensação de déjà-vu. Ouvi os panegíricos de ocasião, reparei na tristeza de alguns e enfadei--me com o ar funcional de basbaque de muitos. O que mais me impressionou foi o sentido devoto que impregnou quase todos os discursos, que se percebia no vigor e tempo das palmas e que se derramava nas declarações populares que ostentavam um fervor mais típico de quem gosta de exibir os joelhos roçados no Santuário de Fátima do que em experimentar a mágoa da partida de um escritor.
Transbordava-me a memória de funerais com impressões idênticas, sobretudo os de Álvaro Cunhal e da irmã Lúcia. Neles, a mesma significação asfixiante, quase canonizada, beata e absoluta, na sublimação das presumidas virtudes de quem se finou.
A maioria dos elogios oficiais a Saramago centrou-se na sua obra literária. E ainda bem. Mas o mesmo não aconteceu com as loas dos políticos e nas expressões dos circunstantes, especialmente nos que brandiam cravos vermelhos com o ar temível de quem ansiava que fossem antes adagas tintas de sangue da revolução que julgam por fazer - estes, celebravam o outro Saramago, o homem político, amargo e derrotado, que aplaudia e inocentava tiranias ignóbeis, e não aquele que conquistou o mundo entretecendo as palavras de modo inigualável.
Nas exéquias de Cunhal estava bastante mais gente, mas distingui igual sofreguidão de desforra perante a história que lhes fugiu das mãos. Infelizmente, parece que o que causava a dose maior da admiração comum por Saramago não estava no seu talento mas, paradoxalmente, na sua irreversível predilecção por sistemas em que a vontade das pessoas não conta para nada e em que os homens acabam sujeitos a ditames totalitários que lhes mutilam a capacidade de serem o que são por si próprios sob o pretexto de os quererem aperfeiçoar.
Numa rádio de passagem, ouvi um "saramaguista" de serviço elucidar que o escritor andava descontente com a humanidade, que tinha concluído que os homens são maus por natureza e que todo o desacerto do mundo viria daí. Descontando a ilustração de café, o perito, provavelmente sem o saber, tocou no apuro maior de todos os crentes obstinados: a contradição entre a sua ideia e a realidade. Quando os idealistas percebem que a verdade que repousa na sua mão direita não é agarrada pelo resto do mun- do ficam revoltados - tornam-se nostálgicos do cumprimento de um sonho que só deveria persistir para ser apenas isso ou, pior, tentam impor a sua utopia à realidade se o Estado lhes der meios coactivos que permitam essa calamidade. Porque, para o crente, a sua verdade é sempre mais importante do que as pessoas, e tudo se justifica para a alcançar.
Daí Saramago ter-se acicatado contra a Igreja numa dose tamanha. Percebeu melhor do que ninguém que aquela era a única crença capaz de rivalizar com a sua dentro do mesmo terreno "feito daquilo de que os sonhos são feitos". No fundo, como deduzo do L'Osservatore Romano e de alguns funerais, é uma disputa entre semelhantes excessivamente desconfortáveis de tanto assim o serem.

Carlos Abreu Amorim in DN