Desde que se lembra
que o seu sonho era ser piloto de aviões. E voar sempre foi o seu sonho porque,
imaginava ele que talvez assim conseguisse ultrapassar os limites do espaço
onde nascera, e ver em cada coisa e em cada pessoa, aquilo que a define como especial, como
única no mundo; até porque, já tinha ouvido dizer que quem se atreve a
sonhar arrisca-se a que algum dos seus sonhos se realize.
E por isso, sempre que podia, alugava uma avioneta e lá ia dar asas à sua imaginação, julgando que nesses momentos é o único dono do mundo.
E por isso, sempre que podia, alugava uma avioneta e lá ia dar asas à sua imaginação, julgando que nesses momentos é o único dono do mundo.
Perfilada no
centro da pista, a passarola voadora viu aproximar-se o experiente piloto, Job
de sua graça, o carrasco que a havia alugado para o último voo da sua
existência.
Depois de
rolar pelo alcatrão pouco mais de uma centena de metros, o bimotor
desprendeu-se suavemente do solo e numa questão de segundos já se elevava aos
céus e de asas bem abertas, aí estava ele agora nas alturas, a planar.
Job
gostava de
olhar para as coisas de fora para dentro, do avesso para o direito… de ver o
que muitos faziam de conta que não viam; e lá de cima, ao comando do monolugar,
onde a vista alcança até mais longe, consegue mesmo ver o que poucos viam… viajando
sem se cansar, seja qual for a lonjura.
Seriam duas
horas a sobrevoar toda a cidade, que em dia de festa recebia nesse exacto
momento a visita de alguém que aí nunca havia estado, e que só aí se tinha
deslocado para cumprir a sua obrigação de governante: inaugurar uma avenida.
- Curioso é o mundo visto aqui de cima, como
quem paira, matutava ele com os seus botões.... Aqui no céu, não há avenidas nem proibições de estacionamento, não há carros a
circular, vagarosos ou impacientes, nem cruzamentos e encruzilhadas, ou
semáforos intermitentes… é tudo livre e desimpedido, é tudo
liberdade…
Ainda inebriado
por estes pensamentos, Job depressa desceu à terra ao aperceber-se lá de cima, que
poucos pés abaixo de si, havia gente do comércio local que se manifestava contra
a falta de estacionamentos na nova avenida acabada de inaugurar. Talvez por
isso, aquele dia de luto iria, certamente, ficar na história da cidade.
Esse, e certamente muitos outros, como quando por aí desfilarem procissões que, ao compasso das filarmónicas, deixem no ar o cheiro a alecrim e rosmaninho, seguidas por intermináveis filas de trânsito; ou até mesmo quando, céleres como raios, por aí passarem esguios e transpirados ciclistas em direcção a uma qualquer meta onde há-de estar alguém a aguardá-los para uma sempre fotogénica entrega de prémios.
Esse, e certamente muitos outros, como quando por aí desfilarem procissões que, ao compasso das filarmónicas, deixem no ar o cheiro a alecrim e rosmaninho, seguidas por intermináveis filas de trânsito; ou até mesmo quando, céleres como raios, por aí passarem esguios e transpirados ciclistas em direcção a uma qualquer meta onde há-de estar alguém a aguardá-los para uma sempre fotogénica entrega de prémios.
Mas lá de
cima nem tudo parece perfeito, e por vezes o que se vê nada se coaduna com o
que é.
A pista
ciclável, por exemplo, parecia-lhe descontínua, até parecia que havia mesmo
locais onde nem sequer existia, e que nuns pontos surgia encostada aos muros, a
ameaçar a segurança dos utilizadores… a arborização, essa nem sequer conseguia vislumbrar…
e os amplos espaços de lazer e os fartos lugares de estacionamento pareciam,
afinal, espaços minúsculos e reduzidos… Ah! E lá em cima também não era
possível ver os muros de betão de altíssima qualidade construídos nas testeiras
de alguns (poucos) dos confinantes; e também nem sequer se conseguia aceder à
linha pública de wireless…
E tudo isto
Job sabia que existia. O que não deixava de ser estranho, porque até já lhe
tinham dito que há quem, dos aviões consiga mesmo ver as azeitonas penduradas
nas oliveiras…
Mas
Job sabia que Bob, o construtor da obra, não era responsável por não se ver lá
de cima aquilo que dizem existir, porque afinal o projecto da nova avenida até teria
na sua génese a mobilização e o envolvimento efectivo da população local.
O tempo
passou veloz, e logo a seguir Job voltou à terra. Depois de desligar os
motores, pousou a nuca sobre o já puído mas ainda
macio encosto, levou a mão ao peito e sentiu a batida forte, mas compassada do
seu coração. E deixou-se estar… e a sonhar… acordado.
Minutos depois desceu a
curta escada, limpou o suor da testa com a costa da mão, o que mal se explicava
porque não estava calor e até corria uma aragem; tirou o casaco, abriu ainda outro
botão da camisa e sentiu um arrepio causado por uma ponta de frio que vinha do
norte. Com uma passada estugada e firme dirigiu-se ao escritório do hangar, bateu
à porta, e depois de autorizado entrou e disse:
- Amigo Mário, acabei de tomar uma decisão: quero
comprar a sua avioneta, diga-me quanto quer por ela, que eu não discuto o
preço.
Depois de
subtrair a avioneta à morte certa, Job baptizou-a como
‘Voo da Liberdade’ e pôde, finalmente, realizar o seu sonho de infância, levando
a alma para
paraísos distantes, de risos contagiantes e alegrias desmedidas.
Inabalável e
com o olhar fixo no horizonte, o ressuscitado bimotor prometeu a si próprio que
nunca trairia a confiança que Job nele depositara.
Também para
Job, o dia fora inesquecível…
Publicado no 'Jornal da Bairrada' de 25 de Julho de 2013.
Publicado no 'Jornal da Bairrada' de 25 de Julho de 2013.