Duas décadas
mais tarde, eu soube que ele tinha realmente voado para Paris naquele
fim de semana, mas tinha perdido o pedaço de papel com o meu endereço e
número de telefone. Ele acabou por se hospedar num hostel e eu por me
casar e ter três filhos com o próximo homem com quem namorei.
A minha entrevista com Justin McLeod estava na fase final quando lhe atirei uma última pergunta: "Já alguma vez esteve apaixonado?" O presidente executivo com cara de adolescente tinha criado a Hinge, que era uma nova aplicação para encontros. A minha pergunta era obviamente retórica.
Justin
pareceu chocado. Nunca ninguém lhe tinha perguntado isso numa
entrevista, disse. "Sim", respondeu por fim. "Mas só percebi isso quando
já era tarde de mais." Pediu-me então para parar a gravação. Eu
carreguei no stop.
Com
o gravador desligado, ele parecia aliviado por poder desabafar. Ela
chamava-se Kate. Tinham sido namorados na faculdade. Ele estava sempre a
partir-lhe o coração. (As lágrimas inundavam-lhe agora os olhos.) Ele
não era a melhor versão de si mesmo naquela época. Desde então tinha
conseguido fazer as pazes com todos, incluindo Kate. Mas ela vivia agora
no estrangeiro e estava noiva de outra pessoa.
"Será que ela sabe que ainda a ama?", perguntei.
"Não", respondeu. "Ela está noiva há dois anos."
"Dois anos?", espantei-me. "Porquê?"
"Não sei."
Naquela
altura eu estava separada há um ano, depois de um casamento de duas
décadas. Tinha andado a pensar muito sobre a natureza do amor, a sua
raridade. Na verdade, a razão pela qual eu estava a entrevistar Justin
era porque a sua aplicação tinha ajudado a facilitar um encontro às
cegas pós-separação, o meu primeiro de sempre, com um artista por quem
me tinha apaixonado à primeira vista.
O
amor à primeira vista era algo que nunca tinha acontecido comigo. Ele
foi também o primeiro homem a aparecer no meu ecrã depois de eu ter
instalado a aplicação de Justin.
Para
quem estiver a contabilizar, foram várias estreias de seguida: a
primeira aplicação de encontros, o primeiro homem no meu ecrã, o
primeiro encontro às cegas, o primeiro amor à primeira vista. Eu estava
interessada em entender o algoritmo da aplicação, como é que ele tinha
feito, como é que tinha adivinhado, tendo em conta os nossos amigos do
Facebook em comum, que aquele homem em particular, um escultor focado na
relação entre a imagética libidinal e as flores, assentaria raízes no
meu coração.
"Você tem de lhe dizer",
disse eu a Justin. "Escute -" e contei-lhe a história do rapaz que eu
tinha amado antes de conhecer o meu marido.
Ele
era um finalista universitário e estava a estudar Shakespeare no
estrangeiro. Eu era uma fotógrafa de guerra de 22 anos, a viver em
Paris. Tínhamo-nos conhecido numa praia das Caraíbas, em seguida fui
visitá-lo a Londres, em estado de choque, depois de ter feito a
cobertura do fim da guerra soviético-afegã.
Eu
pensava nele todos os dias em que estive a fazer a cobertura daquela
guerra. Quando dormia em cavernas e fiquei tão doente com disenteria e
uma ferida de estilhaços infetada na mão que tive de ser transportada
para fora do Hindu Kush pelos Médicos sem Fronteiras, a única coisa que
me dava forças para continuar era o meu amor por ele.
Mas
algumas semanas depois da minha viagem a Londres, ele deixou-me
pendurada. Disse que iria visitar-me ao meu apartamento em Paris, num
determinado fim de semana, e nunca apareceu. Ou foi o que pensei.
Duas
décadas mais tarde, eu soube que ele tinha realmente voado para Paris
naquele fim de semana, mas tinha perdido o pedaço de papel com o meu
endereço e número de telefone. Eu não estava na lista. Ele não tinha
atendedor automático. Nós não tínhamos amigos em comum. Ele acabou por
se hospedar num hostel e eu acabei por me casar e ter três filhos com o
próximo homem com quem namorei. E assim a vida continua.
Quando
o Google foi inventado, a primeira fotografia minha a aparecer no ecrã
dele foi uma dos meus filhos comigo, tirada de um artigo que alguém
tinha escrito sobre o meu primeiro livro, um livro de memórias dos meus
anos como fotógrafa de guerra. Pouco depois, ele casou-se e teve três
filhos com a próxima mulher com quem namorou. E assim a vida continua.
Encontrei-o
por acaso, quando fazia uma pesquisa sobre companhias de teatro para o
meu último romance.
Ali estava ele por cima do seu nome demasiado comum.
Escrevi-lhe um e-mail: "Você é o mesmo homem que me deixou pendurada em
Paris?"
E foi assim que fiquei a saber
o que tinha acontecido naquele fim de semana e comecei a digerir todo o
impacto da nossa ligação perdida.
O
trabalho dele trouxe-o a Nova Iorque alguns meses mais tarde, e
encontrámo-nos para um almoço de primavera num banco do Central Park. Eu
estava tão desconcertada que entornei a minha limonada e deixei cair a
sanduíche de salada de ovo: o nosso amor há muito perdido ainda lá
estava.
Na verdade, o epílogo
proporcionado pela nossa reunião e o choque do reconhecimento de um amor
ainda existente, que tinha sido privado de sol e água, iriam daí em
diante afetar ambos os nossos casamentos, embora de maneiras diferentes.
Ele percebeu o quanto precisava de se dedicar a cuidar do seu
casamento.
Eu percebi que tinha dado ao meu todos os nutrientes e
cuidados que consegui - 23 anos a lavrar aquele solo - mas o campo
estava estéril.
Ao ouvir Justin falar
do seu amor por Kate, sentada noutro banco da cidade de Nova Iorque
quatro anos depois, senti uma nova urgência. "Se você ainda a ama e ela
ainda não casou tem de lhe dizer", disse-lhe eu.
"Agora. Não vai querer
acordar daqui a 20 anos e arrepender-se do seu silêncio. Mas não o pode
fazer por e-mail ou Facebook. Tem de aparecer em pessoa e estar disposto
a levar com a porta na cara."
Ele sorriu melancolicamente: "Eu não posso fazer isso. É demasiado tarde."
Três
meses mais tarde, ele enviou-me um convite para almoçar. O artigo que
eu escrevi sobre ele e a sua empresa, no qual ele me tinha autorizado a
mencionar Kate (a quem eu tinha chamado a sua "Rosebud"), havia
despertado o interesse pela sua aplicação e ele queria agradecer-me.
No dia marcado apareci no restaurante e disse ao rececionista: "Justin McLeod, mesa para dois."
"Não", disse, de repente, uma voz atrás de mim. "Para três."
"Três? Quem é que se vai juntar a nós?"
"Ela",
disse ele, apontando para a silhueta de uma mulher que passava
apressada pela janela do restaurante, uma mancha de casaco cor--de-rosa
com o cabelo de um ruivo claro a esvoaçar atrás dela.
"O quê? É Rosebud?"
"Sim."
Kate
entrou e abraçou-me. De perto, ela assemelhava-se a uma outra Kate, a
Hepburn, que havia aparecido nas comédias de novo casamento que eu tinha
estudado na faculdade com Stanley Cavell.
Aqueles
filmes, precursores das comédias românticas de hoje, foram feitos na
América nas décadas de 1930 e 40, quando não era permitido mostrar o
adultério ou o sexo ilícito. Para passarem na censura, os argumentos
eram sempre os mesmos: um casal divorciava-se, ambos namoravam com
outras pessoas e, depois, casavam-se novamente. A lição? Às vezes temos
de perder o amor para o reencontrar e um retorno ao mundo verde é a
chave para voltar a florir.
"Tudo isto aconteceu devido a si", disse Kate, chorando. "Obrigada."
Neste ponto, Justin e eu já chorávamos também, ao ponto de os outros clientes ficarem a olhar para nós, espantados.
Quando
nos sentámos, eles contaram-me a história do seu reencontro, terminando
as frases um do outro, como se estivessem casados há anos. Um dia,
depois de um encontro casual com um amigo de Kate, Justin mandou-lhe uma
mensagem para marcar uma conversa por telefone, depois reservou um voo
transatlântico para a visitar sem aviso prévio. Ligou-lhe do seu quarto
de hotel e perguntou-lhe se podia aparecer. Ela iria casar-se dentro de
um mês mas, três dias depois, saiu do apartamento que partilhava com o
noivo.
Senti uma pontada de culpa. Pobre homem!
Foi
pelo melhor, disse ela. Há anos que o relacionamento deles era
complicado. Ela estava a tentar descobrir uma maneira de adiar ou
cancelar o casamento, mas os convites já haviam sido enviados, o sítio e
o fornecedor estavam marcados, e ela não sabia resolver a sua
ambivalência sem dececionar toda a gente.
Justin
tinha chegado à sua porta quase no último momento em que poderia ter
falado ou ficado calado para sempre. Na altura do nosso almoço, os dois
já estavam a viver juntos.
Pouco tempo
depois, convidei--os para jantar para os apresentar ao artista obcecado
por flores que tinha metade da responsabilidade pelo reencontro deles.
Ele e eu não tínhamos funcionado como casal, com muita pena minha, mas
tínhamos encontrado o nosso caminho de volta para uma estreita amizade e
até mesmo para uma colaboração artística, quando ele me mandou numa
mensagem um esboço que tinha feito.
Na
verdade, tínhamos acabado de assinar um contrato para produzir três
livros juntos: O ABC da Idade Adulta, O ABC da Paternidade e - oh, a
ironia - O ABC do Amor.
"Qual foi o esboço?", perguntou Kate.
Mostrei-lhe o desenho no meu iPhone.
"São ovários?", perguntou ela, sorrindo.
"Ou sementes", respondi. "Ou flores em botão, dependendo de como olharmos para ele."
Tudo
interpretações perfeitamente razoáveis de amor gerando amor, gerando
amor, razão pela qual estávamos todos reunidos à volta da minha mesa
naquela noite, não é verdade? Porque o amor verdadeiro, uma vez
desabrochado, nunca desaparece. Pode perder-se com um pedaço de papel,
ou transformar-se em arte, livros ou crianças, ou desencadear a união de
outro casal quando fracassa na cimentação da nossa.
Mas
ele está sempre lá, à espreita de um raio de sol, fazendo força através
de um solo lavrado, insistindo na sua existência legítima nos nossos
corações e na terra.
Retirada daqui