segunda-feira, 18 de março de 2013

ACALMA.

Não se lembrava onde tinha guardado a calma

Estava um dia demasiado quente para pensar. Os pensamentos dão-se mal com temperaturas muito altas. Desde que tinha chegado que passava pelos dias a tentar lembrar-se de onde a tinha deixado. De vez em quando vinha-lhe à ideia que talvez tivesse ficado em cima da mesa da cozinha da casa da rua sem nome, aquela onde tinha morado alguns anos antes chegar ali. 


A casa tinha uma varanda e um pátio aos pés dela e apesar de só ter um quarto onde se pudesse dormir tinha uma mesa enorme no meio da cozinha. Daquelas mesas tão grandes que podemos pôr quase tudo em cima delas. Talvez a calma lá tivesse ficado, seria um bom sítio para se deixar ficar uma coisa tão valiosa. 

De vez em quando fechava os olhos e tentava imaginar se teria ficado por lá. Mas de repente lembrava-se daquela tarde em que a chuva miudinha que se entreteve a gelar-lhe os ossos e de ter precisado da calma nesse dia. E esse dia tinha anoitecido há muito tempo e ela tinha usado a calma e até tinha achado que tinha ficado bem com o casaco de malha bege que trazia vestido. Por isso, a calma não podia ter ficado na casa da rua sem nome em cima da mesa grande da cozinha. Porque o casaco bege tinha sido comprado na rua que não era direita e muitos anos depois de ter deixado de viver na rua sem nome.

Não, a calma devia ter ficado noutro sítio qualquer e ela só precisava de ser capaz de se lembrar da última vez que a tinha sentido.

Nos dias quentes custa muito pensar.

Pensar cansa muito, quase tanto como viver ou subir quatrocentos e setenta e seis degraus muito depressa. E pensar quando os dias estão quentes é muito mais difícil mas ela já não sabia explicar porquê. Quando andava com gorros e luvas também não lhe dava assim muito jeito. E isso trazia-lhe algum desespero, aquele que andava sempre ao pé do bilhete de metro usado no bolso esquerdo dos casacos. O desespero e a impaciência raramente se largavam e gostavam de se esconder nos bolsos sempre prontos a serem encontrados. A calma é que não havia maneira de se lembrar onde a tinha deixado ficar.

Podia ter sido no branco país dos lagos e das praias verdes ou no azul de um céu que não era o dos outros, daquele azul difícil de explicar. E se tivesse sido algures entre o sítio que dói e o lugar das coisas que queremos que existam?

Onde raio teria ficado? No meio das papoilas ou no olhar que não tem fundo? Talvez pudesse ter sido no meio sorriso de alguém que tivesse tido a chave da porta. Ou não. Ou então talvez sim. Ou “talvez – talvez” que é uma coisa tão terrível como não se lembrar onde se deixou a calma.

Não se conseguia lembrar da última vez que a tinha visto. Seria do calor ou do barulho que fazem as coisas que nos atrapalham os pensamentos? 

Seria por causa do frio de dentro? Talvez fosse por chover depressa ou por as paredes se encolherem sem avisar. 

Talvez se fosse capaz de fechar os olhos e respirar mais devagar.

Talvez se lembrasse que tinha ficado no colo dele. 

E a calma também.

Cristina Gameiro, aqui