Numa declaração iniciada pouco depois do meio-dia de domingo, Paulo Portas disse o que nunca se tinha ouvido em Portugal: que discorda de uma medida importantíssima tomada pelo Governo do qual é ministro de Estado.
E explicou por que não a vetou: porque percebeu que isso punha em causa a avaliação da troika e a continuação da ajuda a Portugal.
O jornal Público destacou uma afirmação de Abebe Selassie, do FMI, dizendo que a TSU não fora uma exigência da troika.
Muitos tiraram daí a ideia de que a troika estava contra a medida ou tinha dúvidas em relação a ela.
Ora passou-se o contrário: sem essa medida, anunciada à pressa por Passos Coelho, a avaliação troika teria sido negativa, colocando Portugal numa situação delicadíssima.
O SOL revelou este facto na última edição – e Paulo Portas veio depois confirmá-lo.
A propósito de desinformação, deve dizer-se que muitas pessoas com responsabilidades agiram nas últimas semanas de forma bastante irresponsável.
Em momentos de crise, as pessoas mais informadas têm o dever de esclarecer as mais emotivas, colocando o debate político em termos racionais.
Devem deitar água na fervura – e não gasolina no fogo.
Ora, Mário Soares, Manuela Ferreira Leite, mesmo Bagão Félix ou Marcelo Rebelo de Sousa, acabaram por, involuntariamente ou não, assumir o papel de incendiários.
Não se lhes pedia que omitissem a sua opinião.
Mas deviam enquadrá-la, explicando que é ilusório neste momento pensarmos em facilidades – e que uma ruptura com a troika produziria efeitos dramáticos: Portugal não teria dinheiro para satisfazer os seus compromissos, cairia no descrédito internacional e depois ninguém nos emprestaria um cêntimo (ou, se o fizesse, fá-lo-ia a juros proibitivos).
É preciso explicar que é isto que temos de evitar.
E que, mais TSU, menos TSU, o que os portugueses vão perder em salários não será muito diferente.
Também não são honestos os que dizem que, após um ano de austeridade, tudo está pior.
Eles sabem que a despesa do Estado diminuiu (apesar da subida dos encargos sociais).
Que a dívida externa diminuiu.
Que os juros da dívida soberana diminuíram imenso.
Que a balança comercial registou um superavit ao fim de décadas.
Que a credibilidade internacional do país foi reposta.
Ora é tudo isto que andaria para trás se este Governo falhasse.
As pessoas informadas têm a obrigação de o saber e de o explicar – em vez de se comportarem como pirómanos sociais.
Foi esta pedagogia que Paulo Portas, apesar da sua discordância, teve a inteligência de fazer no domingo passado.
Explicou que está contra as mexidas na TSU, mas que bloqueá-las teria sido muito mau.
Explicou que este Governo já teve muitos ganhos – e que interromper este processo seria deitar tudo a perder e voltar ao ponto zero.
Claro que a declaração de Portas iniciou um tempo novo: um tempo em que existe oposição dentro do próprio Governo.
Em que há um ‘partido mau’, que quer o mal dos portugueses, e um ‘partido bom’, que os defende até ao limite das forças.
Esta situação tem defeitos mas também tem virtudes.
Os defeitos são óbvios: o poder deve falar a uma voz e não a duas.
As virtudes são estas: as pessoas não verem o poder político como um todo homogéneo e hostil, considerando haver no Governo quem defenda os seus interesses,
Claro que, no meio disto tudo, Pedro Passos Coelho é o ‘mau da fita’.
Muita gente não percebe (ou não quer perceber) que, sem a sua determinação, já estaríamos tão mal como a Grécia, pois a torneira do dinheiro tinha-se fechado.
Mas o facto de ser o ‘mau da fita’ faz desabar sobre ele todo o ódio.
Enquanto Portas surge como o ‘protector dos necessitados’, Passos é o ‘Robin dos Bosques ao contrário’, que rouba aos pobres para dar aos ricos.
Ora é muito difícil liderar o Governo nestas condições.
Ainda por cima, sem nenhum benefício pessoal.
Já se pensou no que será a vida do primeiro-ministro?
No que será governar sem o apoio total do parceiro de coligação, com manifestações hostis em todos os sítios onde vai, com perseguições no local onde passa as férias, perante a chuva de críticas de grande número de personalidades do seu próprio partido – Marcelo Rebelo de Sousa, António Capucho, Morais Sarmento, Pacheco Pereira, Manuela Ferreira Leite, Rui Machete, Alexandre Relvas, Alberto João Jardim, etc. – que nem nos momentos mais difíceis o poupam?
Além disso, Passos Coelho ainda está obrigado a encontrar consensos externos – porque a troika, ou seja, os nossos credores, não está disposta a aceitar tudo o que nós queiramos.
Governar nestas condições é quase sobre-humano.
Uma nota final para dizer que, para a coligação, são muito mais perigosos os descontentes do PSD do que o CDS inteiro.
O CDS nunca romperá a coligação – porque sabe que a sua importância decorre de estar no Governo.
E Portas percebe que isso representaria para si um harakiri político.
Mas os descontentes do PSD, os barões e baronesas que têm acesso privilegiado à TV, exercem sobre a coligação um desgaste terrível.
É bom recordar que foram eles (de facto) que derrubaram o Governo de Santana Lopes, oferecendo de bandeja o poder a José Sócrates.
Será que a história vai repetir-se, num contexto muitíssimo mais delicado?
P.S. 1 – As manifestações de 15 de Setembro, segundo muitos comentadores, mostraram claramente que o povo recusa estas novas medidas. Mas alguma vez o povo aprovou perdas de salários ou aumentos de impostos? Já houve em Portugal quase uma guerra civil por causa disso. Se fôssemos por aí, nunca se poderia aumentar a carga fiscal.
P.S. 2 – Ainda as manifestações: a maioria dos comentadores diz que o Governo deve ceder à pressão da rua. Será? Nessa lógica, o Governo de Madrid já teria dado a independência à Catalunha, exigida numa manifestação que juntou 2 milhões de pessoas. É muito perigoso ir por esse caminho.
P.S. 3 – Belmiro de Azevedo (e vários analistas) entende que deve estimular-se o consumo interno para reanimar a economia. Foi isso que Sócrates fez em 2009, diminuindo o IVA e aumentando a Função Pública. Os resultados viram-se.
Observação final: a situação portuguesa ilustra uma vez mais um ditado muito certeiro: «Em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão».
José António Saraiva, aqui