"Meu querido,
não sei se as recordações de nós
já fizeram as malas. Nem sei se já partiram para longe, mas acho que consigo
contar-te a minha tarde. Mas só se me prometeres que não vais contar a ninguém.
Estava lá a rapariga do lenço
azul. Aquela que vivia atrás da tua tia Alice, sabes quem é? Aquela que casou
com o filho da Rosa da padaria, depois de ter dormido com todos os rapazes da
rua, como dizia a tua mãe. Sabes de quem falo, não sabes? Lembras-te dela? Ela
andava sempre de um lado para o outro com a Marina da loja de miudezas, eram
unha e carne. Pronto, era ela e estava lá à tarde com um lenço azul na
cabeça e com uma mala de mão daquelas compradas na boutique da Alzira, sabes
como são? Conheces a Alzira, não conheces? A filha do Augusto que esteve no
Ultramar. Aquele que deu o dinheiro todo à Alzira depois de a mulher morrer e
antes de ela espetar com ele num lar. Há coisas assim, as pessoas pagam caro e
cá os erros que o coração lhes faz cometer, sobretudo quando não o sabem pôr em
guarda.
Pois, a Alzira é essa, não é má
pessoa mas acabou também por pagar o que fez ao pai. Não soubeste? Vá lá
saber-se de onde, apareceu um tipo que se diz irmão dela, quer dizer, que diz
que é filho do Augusto, do tempo em que ele andava lá pela guerra. Coisas.
Tiveram que se juntar os dois para dividir os dinheiros e acabaram por abrir um
negócio de malas e sapatos, mas uma coisa sem jeito. Vendem coisas sem gosto e
deve ter sido lá que a rapariga do lenço comprou a mala que trazia naquela
tarde. Estava parada e pareceu-me à espera de alguém. Sabes, a Marina, a tal
que andava sempre com ela, é que paga as favas. Parece que ficou com a fama que
esta tinha. São assim as coisas e pensei que talvez estivesse à espera dela.
Parece que andam sempre a aparar os jogos uma da outra. Mas a mãe da Marina
jura a pés juntos a toda a gente que vai à padaria, que ainda nenhum homem
tocou na filha. A mãe da Marina trabalha na padaria da Rosa, estás a ver quem
é?
Eu cá não sei, nem digo nada. Desde que soube
que a mulher do Júlio das bombas o apanhou na cama com o sobrinho do Amaral dos
correios, já não ponho as minhas mãos no fogo por ninguém.
Pronto, estava lá a rapariga à
espera, com um lenço na cabeça, daqueles que se compram na feira às quartas de
manhã. Aqueles assim a imitar a seda, sabes como são? Pronto, tinha um lenço
azul na cabeça e a tal mala na mão, e estava à espera de alguém, pareceu-me
logo, mas isso agora não interessa.
Era só para te dizer que nessa
tarde fui para aqueles lados para pensar em ti e na nossa relação, como me
pediste. Mas a rapariga estava ali e ainda estive um bocado a pensar que raio
lhe estaria a passar pela cabeça, mas depois lembrei-me que me tinhas pedido
para pensar em nós e toca de me pôr a pensar. Só que, de repente, ouvi o
barulho de uma motorizada. Vi-te chegar e fiquei pior que estragada! Então tu
pedes-me para passar um bocado de tempo com os meus pensamentos e depois
apareces?! Depois de parares a moto, ficaste ali um bocado a olhar e ainda
pensei que também tivesses ido para ali para pensar em nós. Percebi que afinal
não me tinhas visto. É, pensei que tinhas ido para ali para pensar em nós, mas
não estava a perceber. Para que haverias tu de precisar de pensar nalguma coisa
se tu é que me tinhas pedido em casamento e eu é que tinha ficado de pensar
sobre isso?! Deixei-me ficar quieta. Talvez quisesses pensar já no futuro,
talvez fosse isso. O que eu não pensei foi que a rapariga do lenço começasse a
correr na tua direcção, nem que a abraçasses e que se beijassem assim, como nos
filmes e como me beijavas a mim aos sábados à noite. Não pensei nisso, porque
achei que não era para pensar nisso. Ela era casada e tu querias casar comigo.
Ainda por cima, o lenço era daqueles vulgares que se compram por meia dúzia de
tostões e a mala era de um mau gosto terrível. Porque haverias tu de querer
beijar uma rapariga que anda com a Marina e que compra malas na loja da filha
do Augusto?! Não sei se consigo perceber isso.
Esperei um bocado que vocês se
fossem embora e depois fui para casa. Não te telefonei porque tinha pedido à
Flora para me ir pagar a conta há três semanas e ela disse que ia mas não foi
nada, e o Aurélio dos telefones veio cá na sexta-feira e cortou-mo. Só cá
estava o meu pai em casa e, como estava de cama com gripe, não quis saber e
deixou-o fazer o serviço dele. Mas
também não sei se te teria dito isto tudo pelo telefone. Por isso, antes
de ir para casa, passei pela padaria e estava a tomar um café quando apareceu o
Alberto, o filho da Rosa, sabes quem é?! Pois, o marido da rapariga do lenço
azul. Pusemo-nos à conversa e olha, acabei por lhe contar. Ele, coitado, ficou
assarapantado, mas depois disse-me que não era nada que não esperasse dela.
Perguntou-me se eu não queria fazer as malas e fugir com ele. Eu disse-lhe que
tinha que pensar, mas depois lembrei-me que por ter que pensar nas coisas te
tinha visto e que era por isso que estava assim, e resolvi ir para casa arrumar
as minhas malas e meter nuns caixotes as recordações que tenho de nós.
O meu pai já está melhor da gripe
e por isso nem sequer estava em casa. Como não sabia se te ia ver ou se ias
chegar a tempo, resolvi escrever-te esta carta a contar-te o que aconteceu na
tarde em que me pediste para casar contigo e em que te disse que ia pensar no
assunto. Vou fugir com o Alberto.
Vamos para casa de um primo da
filha do Valentim da Taipa. Acho que tem uma quinta e que precisa lá de gente
para trabalhar. Olha, acho que vou ser feliz e compor a vida, como tu me tinhas
dito que estava na hora de eu fazer.
Vê lá se não te esqueces de ir à
consulta que te marquei no ortopedista e de pagar as missas ao padre Joaquim,
que eu já as mandei rezar pela alma da tua tia Francisca.
Pronto, era isto que eu tinha
para te dizer. Não digas nada a ninguém, ninguém precisa de saber que o lenço
azul da tua nova rapariga é coisa fraca e tu podes sempre comprar-lhe outro.
Além disso as malas são como os chapéus e para quem é até nem está muito mal.
Não quero que contes nada porque
senão ficavam todos a saber que me andavas a enganar e isso é pior que nascer
manca. Sabes como é esta gente, não sabes? Assim ficas tu como queres e eu com
o Alberto, que me parece ser bom homem. Não achas?
É verdade, antes que me esqueça,
não leves a mal mas não quero casar contigo.
Disseste-me para pensar no assunto
e eu tentei. Não queria que ficasses sem uma resposta.
Pronto. Até um dia destes,
Tua querida"
Cristina Gameiro, aqui