quarta-feira, 13 de junho de 2012

MEU QUERIDO,

"Meu querido,
não sei se as recordações de nós já fizeram as malas. Nem sei se já partiram para longe, mas acho que consigo contar-te a minha tarde. Mas só se me prometeres que não vais contar a ninguém.
Estava lá a rapariga do lenço azul. Aquela que vivia atrás da tua tia Alice, sabes quem é? Aquela que casou com o filho da Rosa da padaria, depois de ter dormido com todos os rapazes da rua, como dizia a tua mãe. Sabes de quem falo, não sabes? Lembras-te dela? Ela andava sempre de um lado para o outro com a Marina da loja de miudezas, eram unha e carne. Pronto, era ela e estava lá à tarde com um lenço azul na cabeça e com uma mala de mão daquelas compradas na boutique da Alzira, sabes como são? Conheces a Alzira, não conheces? A filha do Augusto que esteve no Ultramar. Aquele que deu o dinheiro todo à Alzira depois de a mulher morrer e antes de ela espetar com ele num lar. Há coisas assim, as pessoas pagam caro e cá os erros que o coração lhes faz cometer, sobretudo quando não o sabem pôr em guarda.
Pois, a Alzira é essa, não é má pessoa mas acabou também por pagar o que fez ao pai. Não soubeste? Vá lá saber-se de onde, apareceu um tipo que se diz irmão dela, quer dizer, que diz que é filho do Augusto, do tempo em que ele andava lá pela guerra. Coisas. Tiveram que se juntar os dois para dividir os dinheiros e acabaram por abrir um negócio de malas e sapatos, mas uma coisa sem jeito. Vendem coisas sem gosto e deve ter sido lá que a rapariga do lenço comprou a mala que trazia naquela tarde. Estava parada e pareceu-me à espera de alguém. Sabes, a Marina, a tal que andava sempre com ela, é que paga as favas. Parece que ficou com a fama que esta tinha. São assim as coisas e pensei que talvez estivesse à espera dela. Parece que andam sempre a aparar os jogos uma da outra. Mas a mãe da Marina jura a pés juntos a toda a gente que vai à padaria, que ainda nenhum homem tocou na filha. A mãe da Marina trabalha na padaria da Rosa, estás a ver quem é?
Eu cá não sei, nem digo nada. Desde que soube que a mulher do Júlio das bombas o apanhou na cama com o sobrinho do Amaral dos correios, já não ponho as minhas mãos no fogo por ninguém.
Pronto, estava lá a rapariga à espera, com um lenço na cabeça, daqueles que se compram na feira às quartas de manhã. Aqueles assim a imitar a seda, sabes como são? Pronto, tinha um lenço azul na cabeça e a tal mala na mão, e estava à espera de alguém, pareceu-me logo, mas isso agora não interessa.
Era só para te dizer que nessa tarde fui para aqueles lados para pensar em ti e na nossa relação, como me pediste. Mas a rapariga estava ali e ainda estive um bocado a pensar que raio lhe estaria a passar pela cabeça, mas depois lembrei-me que me tinhas pedido para pensar em nós e toca de me pôr a pensar. Só que, de repente, ouvi o barulho de uma motorizada. Vi-te chegar e fiquei pior que estragada! Então tu pedes-me para passar um bocado de tempo com os meus pensamentos e depois apareces?! Depois de parares a moto, ficaste ali um bocado a olhar e ainda pensei que também tivesses ido para ali para pensar em nós. Percebi que afinal não me tinhas visto. É, pensei que tinhas ido para ali para pensar em nós, mas não estava a perceber. Para que haverias tu de precisar de pensar nalguma coisa se tu é que me tinhas pedido em casamento e eu é que tinha ficado de pensar sobre isso?! Deixei-me ficar quieta. Talvez quisesses pensar já no futuro, talvez fosse isso. O que eu não pensei foi que a rapariga do lenço começasse a correr na tua direcção, nem que a abraçasses e que se beijassem assim, como nos filmes e como me beijavas a mim aos sábados à noite. Não pensei nisso, porque achei que não era para pensar nisso. Ela era casada e tu querias casar comigo. Ainda por cima, o lenço era daqueles vulgares que se compram por meia dúzia de tostões e a mala era de um mau gosto terrível. Porque haverias tu de querer beijar uma rapariga que anda com a Marina e que compra malas na loja da filha do Augusto?! Não sei se consigo perceber isso.
Esperei um bocado que vocês se fossem embora e depois fui para casa. Não te telefonei porque tinha pedido à Flora para me ir pagar a conta há três semanas e ela disse que ia mas não foi nada, e o Aurélio dos telefones veio cá na sexta-feira e cortou-mo. Só cá estava o meu pai em casa e, como estava de cama com gripe, não quis saber e deixou-o fazer o serviço dele. Mas também não sei se te teria dito isto tudo pelo telefone. Por isso, antes de ir para casa, passei pela padaria e estava a tomar um café quando apareceu o Alberto, o filho da Rosa, sabes quem é?! Pois, o marido da rapariga do lenço azul. Pusemo-nos à conversa e olha, acabei por lhe contar. Ele, coitado, ficou assarapantado, mas depois disse-me que não era nada que não esperasse dela. Perguntou-me se eu não queria fazer as malas e fugir com ele. Eu disse-lhe que tinha que pensar, mas depois lembrei-me que por ter que pensar nas coisas te tinha visto e que era por isso que estava assim, e resolvi ir para casa arrumar as minhas malas e meter nuns caixotes as recordações que tenho de nós.
O meu pai já está melhor da gripe e por isso nem sequer estava em casa. Como não sabia se te ia ver ou se ias chegar a tempo, resolvi escrever-te esta carta a contar-te o que aconteceu na tarde em que me pediste para casar contigo e em que te disse que ia pensar no assunto. Vou fugir com o Alberto.
Vamos para casa de um primo da filha do Valentim da Taipa. Acho que tem uma quinta e que precisa lá de gente para trabalhar. Olha, acho que vou ser feliz e compor a vida, como tu me tinhas dito que estava na hora de eu fazer.
Vê lá se não te esqueces de ir à consulta que te marquei no ortopedista e de pagar as missas ao padre Joaquim, que eu já as mandei rezar pela alma da tua tia Francisca.
Pronto, era isto que eu tinha para te dizer. Não digas nada a ninguém, ninguém precisa de saber que o lenço azul da tua nova rapariga é coisa fraca e tu podes sempre comprar-lhe outro. Além disso as malas são como os chapéus e para quem é até nem está muito mal.
Não quero que contes nada porque senão ficavam todos a saber que me andavas a enganar e isso é pior que nascer manca. Sabes como é esta gente, não sabes? Assim ficas tu como queres e eu com o Alberto, que me parece ser bom homem. Não achas?
É verdade, antes que me esqueça, não leves a mal mas não quero casar contigo.
Disseste-me para pensar no assunto e eu tentei. Não queria que ficasses sem uma resposta.
Pronto. Até um dia destes,
Tua querida"
 
Cristina Gameiro, aqui