terça-feira, 7 de junho de 2011

QUEM VÊ CARAS VÊ CORAÇÕES?

No rosto de sócrates, durante o discurso pós-derrota, já não havia o habitual ultraje e indignação com as perguntas dos jornalistas - mesmo que os militantes presentes apupassem as questões em directo para a TV.

Era uma cara menos plástica, as feições menos forçadas, e as rugas, os papos nos olhos, os cabelos brancos, por fim sentiam um alívio ao fim de tantos anos.

Não haverá agora inaugurações de quartéis de bombeiros ao domingo, horas de sono em falta, jogos de poder, a criação de um discurso e de uma personagem para as câmaras, para ganhar eleições. Sócrates tinha cara de quem ia de férias, a expressão de quem é despedido mas percebe as melhorias que isso trará para a sua vida.

O rosto de Passos Coelho, por sua vez, não estava muito diferente daquilo que foi durante a campanha. Já lhe chamaram cândido, ingénuo, menino pronto a ser engolido, mudado, esgotado pelos interesses do partido, do sector financeiro, da troika, do poder em si mesmo. O poder muda a cara de quem o tem. Torna os cabelos mais brancos, o coração mais seco.

Como será a cara de Passos Coelho daqui a quatro anos? Como serão as suas expressões quando andar por quartéis de bombeiros, reuniões internacionais, conversas com autarcas obsoletos, quando dormir pouco e tiver de enfrentar tudo aquilo que jamais se falou na campanha: os sacrifícios, as eternas mudanças estruturais, a Justiça falhada, ineficaz, egotista? Como estarão os seus olhos quando perceber que mudar o regime, que fazer o que não se fez em 30 anos será como empurrar elefantes na areia?

O que dirá a cara de Passos Coelho quando os boys exigirem empregos e perceber que a boa vontade não é suficiente para a mudança tantas vezes anunciada, ao longo de tantos anos, em slogans eleitorais de vários partidos? Como reagirá a sua cara quando tiver de escolher aquilo que é mesmo preciso fazer ou aquilo que ganha votos? Como estarão os seus olhos quando perceber que tantos portugueses se estão a cagar para as grandes questões nacionais, que não saem de casa para ir votar, que não cuidam da sua rua quanto mais do país?

E os jornalistas, qual será a sua cara quando for preciso perguntar, investigar, não ceder a telefonemas de assessores de políticos que já foram jornalistas (e que serão outra vez) para publicar isto, corrigir aquilo, não fazer perguntas incómodas numa conferência de imprensa? Terão a cara de parvo de quem segue um líder partidário numa moto em noite eleitoral? Terão essa cara de quem enche chouriços mediáticos em directo, perseguindo Sócrates até sua casa ou a cara de quem faz perguntas aos vizinhos de Passos Coelho na manhã seguinte?

E qual será a cara dos portugueses daqui a quatro anos? Será igual à cara de sempre, resignada, por vezes irritada, mas resignada outra vez? Seremos a cara de Sócrates, aliviado, porque talvez alguém tome conta do barco? Ou será a cara de sempre: mais uma ficha, mais uma voltinha. Como será a nossa cara? Como será?

Hugo Gonçalves, aqui