No meu primeiro dia de trabalho na florista apareci de
sandálias.
No segundo dia, percebendo que precisava de algo mais fechado calcei
os meus bonitos sapatos de atacadores. No terceiro dia, já me tinha apercebido
que seria melhor uma coisa mais simples e estreei um par de botas de basquete
vermelhas que comprei de propósito para o trabalho.
"É como enrolar um bebé", disse-me alguém numa
tentativa de me ajudar, mas eu nunca tinha feito isso também.
O meu sonho de trabalhar numa loja de flores tinha as suas
raízes no jardim da minha avó, sempre em flor, onde eu fazia ramos com tudo
onde conseguia pôr as mãos. Mas essa experiência em nada me preparou para o
número de baldes que tinha que limpar ou para a forma como a sujidade se
introduzia permanentemente debaixo das minhas unhas.
Contudo, principalmente, eu não estava preparada para as
pessoas, desde o homem que oferecia três flores a três estranhos todas as
terças-feiras, até ao convidado do jantar de Ação de Graças que enviou um ramo
aos seus anfitriões depois de ter saído de casa deles com um talher do faqueiro
de prata no bolso. As suas histórias tinham uma forma de entrarem em mim e de
ficarem comigo muito tempo depois de ter fechado a porta da loja à noite.
Sempre gostei de ler as mensagens que acompanhavam cada ramo.
A maioria era o que se poderia esperar, muitos "Amo-te" e
"Desejos de Melhoras". Tínhamos tantos pedidos de "Feliz Dia de
Anos", "Feliz Aniversário" e "A Pensar em Ti" que as
mensagens telefónicas eram escritas de forma abreviada: F.D.A., F.A., P.E.T.
Mas outras tinham mais originalidade, como, "Adeus às
tuas velhas maminhas e olá à nova Megan" ou "Querido Papá do Bebé
Johnny: Obrigada pelo teu esperma poderoso".
Uma vez recebi uma encomenda por telefone de uma dúzia de
rosas amarelas e um cartão a dizer: "Desculpa, eu sou um idiota".
"Só isso?", perguntei. "Desculpa, eu sou um
idiota"?
""Do Teu Pato"", acrescentou a voz.
""Pato" como o animal?"
"Sim."
Eu troçava das mensagens que pareciam demasiado delicodoces,
banais ou chatas, e ficava descoroçoada quando os clientes perguntavam o que
deveriam escrever no seu cartão de pêsames. Mas também compreendia que
encontrar as palavras certas pode ser uma tarefa monumental e que, por vezes,
essas palavras acabam por ser as mesmas que toda a gente utiliza.
Quando já tinha seis meses de trabalho deparei-me com uma
mensagem que me surpreendeu pela sua franqueza e honestidade: "Cartões e
flores parecem uma coisa tão pobre quando alguém morre, mas estamos a pensar em
ti e queremos que saibas disso".
Pensei muito sobre aquela mensagem.
Quando eu tinha 18 anos, o meu namorado de há dois anos
enforcou-se nas traves da sua garagem. Foi o primeiro rapaz que beijei, o
primeiro que amei, a última pessoa com quem falava à noite e a primeira com
quem falava de manhã, até um dia ensolarado de novembro em que acordei com um
telefonema da mãe dele.
As pessoas enviaram cartões. Não me lembro do que escreveram,
mas o que importava era o gesto. Talvez dissessem: "Com as nossas mais
profundas condolências", ou "Sentimos muito a tua perda". Para
mim tudo se resumia a uma palavra: desaparecido.
Depois de ele ter morrido, eu pensava na sua morte como algo
que me tinha acontecido a mim, um ato cometido especificamente a pensar em mim
por causa de alguma coisa que eu tinha ou não tinha feito, e levei anos para me
libertar desta ideia.
Quando comecei a trabalhar com flores já tinha abandonado um
pouco do meu cinismo e da minha amargura. Já não usava as T-shirts antigas dele
para dormir e tinha desistido de encontrar respostas para perguntas
impossíveis, a maioria das quais eram versões do implacável: "O que é que
eu poderia ter feito?" Havia sempre alguma coisa, mas, ao mesmo tempo,
absolutamente nada, e eu tinha aprendido a viver com isso.
Eu tinha mudado de casa, terminado a escola e amado outra
pessoa. Estava mais recetiva à dor das pessoas e também à sua felicidade, dois
estados de alma que costumavam irritar-me de igual modo: a dor, porque ela
tinha batido muito perto, e a felicidade, porque parecia tão distante.
Tornei-me mais interessada nas histórias de outras pessoas e, quanto mais era
confrontada com a vida em toda a sua beleza e fealdade, mais eu sentia alguma
suavização em mim.
Vendi flores a homens e mulheres solteiros, a pais daltónicos
às compras com as suas filhas precoces, a pais, avós, tias e tios recentes, a
noivos de vinte e poucos anos e a casais a comemorarem as bodas de ouro. Dei
flores a homens sem-abrigo que, por sua vez, as ofereceram a raparigas bonitas
de vestidos de verão. Uma vez ofereci uma rosa-chá ao palhaço Extremo - um personagem
de cabelos grisalhos e nariz de espuma vermelho que conduz a carrinha
"Never Never" pelas ruas de Portland, Oregon, com a música a troar os
ares e a acenar com um fantoche de macaco à janela. As pessoas compram flores
quando estão apaixonadas, com problemas, bêbadas, destroçadas, animadas e, às
vezes, sem nenhum motivo aparente.
Apenas ocasionalmente consigo acompanhar o desenrolar da
história. Ajudei um jovem a comprar flores para a namorada e ele disse-me que a
iria pedir em casamento muito em breve, numa viagem que iriam fazer juntos ao
estrangeiro. Lembro-me dele porque entrou à procura das flores mais perfumadas
- goivos, lírios, tuberosas.
Passei 15 minutos com ele, às voltas na loja, cheirando cada
flor. Era a primeira vez naquele dia que eu me tinha dado ao trabalho de
cheirar uma flor, apesar de estar a trabalhar há horas.
Seis meses depois, ele voltou. Mais uma vez lhe mostrei as
flores mais perfumadas, observando-o enquanto ele enterrava o nariz nos ramos e
ouvindo-o falar sobre a sua mulher, agora grávida.
No início ficava espantada com a facilidade e a regularidade
com que era convidada a entrar na vida dos clientes, mas rapidamente isso se
tornou a norma.
"Para que são estas flores?" perguntava, porque era
a minha função.
"Anos de casados." "Aniversário."
"Só porque sim." Mas, depois, às vezes, "Isto pode ser demasiada
informação, mas eu estou a namorar a minha ex-mulher". E assim dava comigo
no meio de uma dissertação sobre como é namorar um ex-cônjuge.
Tomei notas sobre essas conversas, tirei fotografias de
mensagens dos cartões e contei as minhas histórias favoritas da loja aos
colegas de trabalho, familiares e amigos mas, mesmo assim, há muita coisa que
me escapou. Perdi os Post-its ou não consigo entender a que se referem as minhas
notas fragmentadas. Os pormenores escapam-me e, às vezes, parece que quanto
mais eu os tento agarrar, mais difusos eles se tornam.
Isso costumava deixar-me louca. É uma vergonha, pensava,
reunir tantas histórias e deixá-las ir como água por entre os dedos da mão. Mas
a beleza, percebi, era que haveria sempre mais, o que tornava a perda mais
suportável.
Porque mandamos flores? Para compensar o que é intangível?
Aqueles sentimentos que não conseguimos prender nas nossas mãos e oferecemos
como um presente aos nossos entes queridos? E porque é que os símbolos que
escolhemos - a dúzia de rosas vermelhas, os lírios brancos perfumadas, as
tulipas francesas de haste longa - são tão fugazes? Se nos agarrarmos a eles
por muito tempo acabamos com uma confusão de pétalas, pólen e água fétida.
Após a morte do meu namorado fiz tudo para conseguir pôr um
ponto final. Escrevi cartas e queimei-as. Fui a um terapeuta, depois a outro.
Fiz yoga e tentei a meditação. Mudei-me para o Colorado e, em seguida, para o
Oregon. Fui a tantos lugares e levei-o junto comigo para todos eles. Não o
tenho deixado partir.
Há uma fotografia que lhe tirei poucos dias antes de eu
partir para a faculdade, dois meses antes de ele morrer. Foi no verão dos
jantares de nachos e guacamole que nós partilhávamos sentados no chão da sala.
Ele está de pé, na cozinha, vestindo uma T-shirt branca e umas calças de ganga,
com uma metade perfeita de um abacate na mão. O seu rosto não está à vista,
escondido da câmara, mas eu gosto de pensar que ele está a sorrir.
Lembro da canção que estávamos a ouvir, da conversa dos sapos
através da porta de rede, dos meus pés descalços no chão de madeira. Momentos
preciosos, tornados ainda mais preciosos pelo facto de já terem acontecido e já
terem desaparecido. Agora meço o tempo, os meses, por aquilo que é da época:
girassóis em julho, dálias em agosto, rosas silvestres e ácer em outubro,
pinheiro em dezembro, jacintos em março, as clássicas peónias em maio.
Uma das minhas favoritas é a magnólia-túlipa, a forma como os
botões explodem em flores e as flores em tapetes de cor nos relvados, tudo numa
questão de semanas, enquanto neva flor de cerejeira. Vejo como o efémero pode
ser de uma beleza arrebatadora.
Retirada daqui