Cada homem que vem no mundo,
por mais miserável que apareça,
por mais desprezível que pareça,
pode ser um deus disfarçado.
Agostinho da Silva
Cerca de quatro horas após a
partida, estacionaram nas imediações da piscina municipal os autocarros e
viaturas particulares que transportaram a Marcial e cerca de uma centena de
acompanhantes até Campo Maior, às “festas do povo” de 2011.
A primeira impressão não
enganou: a receber a Rambóia, uma vila inteira vestida de flores de papel
formando arcos, mais de uma centena de ruas com verdadeiros tectos artificiais,
cada uma com o seu padrão de decoração, cores e formas variando segundo a
inspiração dos respectivos moradores, um deslumbramento de cor e engenho que em
cada festa atrai gentes de todo o país e do estrangeiro e que neste ano, apesar
do desfavor das condições climatéricas, a organização estimou em cerca de
seiscentos mil visitantes durante os primeiros oito dias em que decorreram as
festas.
Para quem está presente nestas
festas pela primeira vez, não é fácil descrever o que a vista alcança, apesar
da evidente dimensão do esforço, da enormidade de dedicação e da candura do
entusiasmo que envolve o resultado final de meses e meses de trabalho e de luta
sem limites, que têm nas flores a simbologia de um povo cuja elegância e
sensibilidade poeticamente representa com tulipas, a felicidade, a alegria e o
orgulho com girassóis, a lealdade e sinceridade, a modéstia e a simplicidade
com violetas, a paixão com rosas, a indiferença e o capricho com hortênsias, a
ternura com glicínias ou lilases, o amor eterno com amores-perfeitos, o perfume
com jasmins, a extravagância e a fertilidade com papoilas e a liberdade com
cravos.
As “festas do povo”, dedicadas
ao patrono São João Baptista, são uma tradição secular do povo de Campo Maior,
uma verdadeira manifestação da sua identidade através da decoração das ruas da
vila, sobretudo no centro histórico, com milhares de flores de papel feitas
pelos moradores de cada uma das ruas, que durante semanas a fio vivem a azáfama
da organização e preparação dos trabalhos: um evento único, cuja associação
organizadora pretende candidatar-se a Património da Humanidade pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura.
Após o almoço, uma gentileza do
Comendador Rui Nabeiro para com os directores, maestro e executantes da
Marcial, e depois de ter saboreado uma apetitosa alhada de cação, o jovem
trompetista satisfez a sua curiosidade sobre os usos e tradições da festa, entabulando
conversa com um residente que descansava à sombra de uma imponente arcada de
flores de papel que cobria por completo o pátio de entrada da sua residência:
– Isto é muito papel!
– Este ano devem ter chegado às
23 toneladas! Já para não falar das grandes quantidades de madeira e esferovite
que também foram utilizadas.
– Mas isto é tudo colado! –
observou o músico.
– Nada menos de 3000 frascos de
cola, meu caro amigo.
– E arame?
– Muito perto de 3 toneladas!
– Que maravilha! – exclamou a saxofonista que entretanto se
juntou. – E quantos dias demoram
a colocar isto no sítio?
– Como no negócio, a alma destas
festas também está no segredo.
Isto é executado tudo em
segredo, mesmo para amigos e familiares. E o trabalho final só é dado a conhecer
na noite da “enramação”… É tudo colocado à vista apenas durante a noite que
antecede o início da festa.
– O quê? Tudo isto é posto numa
noite? – atirou o clarinetista,
acabado de chegar ao grupo e que nem sequer sabia do que se falava.
– É verdade, menino… – confirmou o idoso, com voz meiga e paciente. –
A vila transforma-se durante uma noite.
Na noite da “enramação” ninguém dorme para que, com a madrugada, nasça também o
maior jardim de flores de papel do mundo. – concluiu.
Nesta altura, já muitos outros
músicos se haviam juntado aos colegas, ouvindo todos o experiente popular a
falar das horas sem conta, subtraídas a merecido e justo descanso e de dedicada
união e aplicação de cerca de 8000 voluntários. Estes ajudam a preparar a
maravilhosa e inesquecível surpresa final, que é o admirável e fascinante
jardim florido, onde brotam milhares e milhares de flores de cores garridas,
preparadas com amor e carinho pelos moradores de cada rua que, dia após dia,
guardam ciosamente e em sepulcral e solidário segredo dos moradores das outras
ruas, a decoração dos seus sítios que, como por encanto, despontam em todas as
ruas da vila quando surgem os primeiros raios de sol de um amanhecer, perante
os olhos incrédulos de quem visita Campo Maior por altura das “festas do povo”.
Durante a tarde, além de
deambular pela centena de túneis multicores, à comitiva fermentelense foi
também possível apreciar a vivacidade do comércio local, descobrir a devoção a
Santa Ana, na Igreja da Misericórdia, admirar a fachada e o interior revestidos
a mármore da Igreja de São João Baptista, visitar a Casa do Assento, onde
funciona o mercado, passear dentro da cerca muralhada, ver as vistas do
castelo, espreitar o pitoresco casario dos quartéis e descobrir, escondida na
Igreja Matriz, a pequena Capela dos Ossos construída em memória (e com ossadas)
das cerca de 800 pessoas que morreram em 1732, quando um raio atingiu um paiol
de pólvora, provocando uma explosão que arruinou a torre de menagem e as casas
de mais de dois terços da população.
Muito para além da original
beleza de Campo Maior, a específica beleza de sentimentos dos próprios campo-maiorenses,
que levam a festa até ao interior das suas próprias casas, mantendo as portas
sempre abertas a quem passa e disponibilizando, a quem procura momentos de
repouso nos bancos do passeio, copos de água fresca tirados dos típicos
cântaros alentejanos, sem esquecer as exuberantes mas graciosas flores que mãos
femininas simpaticamente colocam nas lapela dos forasteiros, simbolizando a
afectividade, a consideração, e a manifestação de pura amizade que dedicam a
quem os visita. Estes momentos são de pura partilha e afecto e criam uma
empatia que há-de perdurar nos tempos.
Para espertar do cansaço já
acumulado, não foram poucos os da Rambóia que optaram por mais um café. Afinal,
estar em Campo Maior é estar junto à maior zona industrial de torrefacção de cafés
da Península Ibérica. O local preferido foram as esplanadas da Praça da
República Portuguesa, um local aprazível, com um pelourinho em que o habitual
pilar é encimado por uma invulgar estatueta com traje do século XVIII
simbolizando a justiça, paredes meias com o belo edifício dos Paços do Concelho,
cujo passadiço dá acesso a uma das muitas e pitorescas ruas de gosto andaluz,
onde o ferro forjado marca a presença forte e a doçaria regional é uma tentação
a que só resistem os menos gulosos.
Ainda procuravam mesas e
cadeiras para se instalarem, quando perceberam que já aí se encontravam dois
elementos cuja presença sobressaía por falarem muito alto, discutindo perante
quem estava, se a aposta valia ou não uma costela de boi.
Com a proverbial simpatia dos alentejanos,
a sorridente brasileira que os atendia disse:
– Aqui opitamos sempre por uma costelinha mais gorda… Que a magra é muito
mais dura.
– Não traga carne gorda! Dessa
estamos nós fartos de comer em Vila Pouca! – ripostou o mais atarracado, estilo de forcado com aspecto rude,
trombudo até fartar e de palito enfiado na amarelada dentuça a roçar a imponente
penca pejada de grossos pêlos que sobressaíam na fechada carantonha.
– Se preocupa não, moço – atalhou a dengosa donzela – Que o excesso de gordura cai na assadeira
durante o tempo de forno.
– E o forno é dos bons? –
insinuou um dos farsantes, com uma
prosápia pouco menos que canina.
– É, sim… Muitíssimo bom mesmo.
E para assar a costelinha está ligado quatro horas! – acrescentou ainda a elegante mas já
impaciente serviçal, para que os industriosos clientes percebessem bem que tudo
o que por ali se comia era da mais recomendável qualidade.
A costelinha daqui é muito
conhecida. Vão ficar satisfeitos, com certeza. – rematou à laia de conclusão.
– Espero que sim. É que só estou
habituado a comer o que é bom! – respondeu
o outro, um delico-doce aspirante de manequim que ostentava uma argolinha
dourada enfiada no abanador esquerdo.
Feita a escolha, os dois
maganões lá meteram no bucho duas abonadíssimas e suculentas costeletas de boi,
supostamente alentejano, que fizeram acompanhar por duas não menos divinais
garrafas de Adega Maior.
O momento era de festa e o
estado de espírito era tão condescendente que, durante o eufórico repasto, a
conversa acabou por derivar para a literatura, com um dos finórios a perguntar
à menina de serviço se conhecia Miguel Torga e se sabia o que tinha ele escrito
a propósito das chegas de bois da raça barrosã.
– Conheço, não. – respondeu ela. – O que são chegas de bois?
– Então, eu conto. – predispôs-se cavalheirescamente o
pantomineiro, com olhar comedor, soerguendo as aparadas sobrancelhas.
– Chegas de bois são lutas entre
animais, que se realizam em Montalegre, lá para Trás-os-Montes. – explicou com ar erudito. – Lutam entre eles, à cornada, e há um que
ganha o combate. E sabe o que acontece ao touro vencido? – perguntou o espertalhão, repetindo a
pergunta de Torga.
– Não faço ideia.
– Abatem-no! – sentenciou ele, enquanto tamborilava os dedos
no tampo da mesa, passando a mão pelo cabelo acobreado e impecavelmente
besuntado.
– Porquê? – quis saber a dendeca.
– Porque deixa de simbolizar o
poder da virilidade. – rematou o
tratante, ao mesmo tempo que cofiava o rosto artificialmente imberbe.
– Deviam fazer o mesmo a certos
homens… – ripostou a brasileira
que, sem saber, acabara de reproduzir essa autêntica pérola literária da
autoria de Torga, enquanto colocava na mesa o talão da conta com um preço bem
menos simpático que o serviço.
– Achas caro? – perguntou o pseudo sabichão.
– Não sei nem quero saber. Quem
paga és tu! Para a próxima, não voltes a apostar comigo que o Porto não é capaz
de ganhar um campeonato ao Benfica com mais de 20 pontos de avanço!
Com tanto para ver e visitar, a
tarde foi curta em demasia. E, por isso, para uma próxima oportunidade, ficou a
vontade de uma presença no povoado pré-histórico de Santa Vitória, no castelo
de Ouguela e no santuário de Nossa Senhora da Enxara.
E ainda haverá que conhecer essa
história da torrefacção de café, cuja memória está bem guardada no Museu do
Café, uma visita que, certamente, se complementará com uma ida à barragem do
Caia, onde um importante centro de lazer com desportos náuticos permite
compreender o sucesso da actividade agro-industrial que se desenvolveu na
região. Talvez, nessa altura, não fiquem por saborear as sopas de batata, de
cação, de tomate e de bacalhau, as migas com entrecosto, o gaspacho, o grão com
carne, a açorda e a carne de porco à alentejana, sempre acompanhadas pelas
azeitonas de Campo Maior. Na doçaria, a gulodice há-de variar entre sericaia
com ameixas, tosquiados, bolos amassados, nogados e tortilhas de amêndoa grão e
gila.
A hora da janta chegou cedo e,
quando se sentaram à mesa, directores, maestro e executantes da Marcial
depressa perceberam que a generosa autarquia local havia apostado bem ao optar
por uns irrepreensíveis pezinhos de porco de coentrada.
A noite pôs-se logo de seguida e,
pouco tempo depois de garantida a vitória portuguesa sobre os cipriotas, a
Marcial fez a sua actuação na parte baixa da vila, avançando com um repertório
adequado, entre pasodobles, música ligeira e rapsódias, intercalada com a
execução da Marcha Comendador Rui Nabeiro, uma inesperada surpresa que calou
fundo ao sócio honorário da colectividade e a todo o séquito acompanhante onde,
além do próprio, se integravam individualidades diversas, desde membros da
comissão organizadora dos festejos a responsáveis da política nacional e do
poder local, cumprindo-se a cortesia da entrega de lembranças que a ocasião
impunha.
Ali ao lado, nas imediações do
palco, e perante a admiração dos visitantes, soltaram-se as “saias”, quadras
soltas bem populares, acompanhadas por pandeiretas e castanholas que executam
um ritmo alegre e ágil com vozes femininas a entoar os cantos quase
freneticamente bailados, enchendo de alegria, fascínio e encanto os dias e as
noites desta vila raiana que, estando separada de Elvas por quinze quilómetros,
fica apenas a cerca de cinco da fronteira com Espanha.
Foram assim, como têm sido sempre
e sempre serão as “festas do povo”, um evento onde este ano esteve uma extensa
comitiva fermentelense composta por músicos, maestro e dirigentes da Marcial e
cerca de uma centena de acompanhantes, uma presença que, tendo sido a primeira,
se espera poder ser outras vezes repetida, embora não se saiba quando. porque
as “festas do povo” se realizam apenas “quando o povo quer”, porque é o povo
quem mais ordena.
E este ano o povo quis. E também
quis que a Marcial estivesse presente num espectáculo sem igual, pela sua
originalidade e colorido, indelével marca de um povo artista, singelo e
generoso que oferece ao mundo um sonho que torna realidade pela alma e pela
vontade da sua gente, que recorda a quem por lá passa que alguns homens nascem
grandes, mas outros conseguem sê-lo pelos seus feitos.