domingo, 14 de junho de 2015

CRÓNICAS DO INFERNO

PERIGO DE FUGA 

Quando há a possibilidade de algumas pessoas tomarem decisões sem que, depois, tenham de prestar contas a quem quer que seja, o mais natural é que entrem pelo caminho do facilitismo que, não raras vezes, conduz à parvoíce e ao ridículo.
 
Todos sabemos que há profissões com poder de decisão sem escrutínio eficaz e real, para além do julgamento pelos seus pares, sempre assente num feroz corporativismo, e que, entre elas, a que mais se destaca é a de magistrado.

Gente com um poder quase absoluto sobre os restantes cidadãos.
 
Ora, como é sabido, se “o poder corrompe o poder absoluto corrompe absolutamente”.
 
Essa prerrogativa que, como diz Marinho Pinto, os torna mais Magestades do que Magistrados, possibilita até que, por vezes, “justifiquem” as suas decisões com um tal desprezo pela inteligência dos outros que chega a roçar o insulto.
 
Escrever que um cidadão – que, estando no estrangeiro, ao saber que o esperam para ser ouvido em Tribunal, telefona e faz saber, pelo seu advogado, que vai regressar ao país para ser ouvido - deve ser preso no aeroporto, à entrada do país, e mantido em prisão preventiva por “perigo de fuga”, é algo que não cabe em qualquer cabeça onde já residam dois neurónios. Mesmo que daqueles mais mirradinhos.
 
No entanto aconteceu.
E mais do que uma vez.
Manter depois, em cárcere, centenas e centenas de cidadãos, em prisão preventiva, com o único intuito de eles não poderem complicar o trabalho dos senhores investigadores, é algo de inconcebível noutro qualquer país europeu.
Mas então os investigadores não deveriam ter terminado o seu trabalho, e apresentado provas concludentes da culpa de um arguido, antes de alguém lhe decretar a prisão?
E se, no fim de tudo, verificarem que o cidadão está inocente?
Também o deixar centenas e centenas de cidadãos a apodrecer nas cadeias, em prisão preventiva, sem conhecerem a acusação, é de uma deslealdade para a defesa só possível num país do terceiro mundo.
Sendo que tal medida proíbe que o arguido se justifique e, quem sabe, possa provar a sua inocência.
Tudo isto me veio à memória depois de conhecida a decisão – que aplaudo veementemente – de José Sócrates recusar trocar a prisão preventiva pela domiciliária, com recurso a pulseira electrónica.
Por todos os motivos por ele apontados mas, principalmente, pela razão invocada pelo Procurador da República para a manutenção da prisão preventiva: “mantem-se o perigo de fuga embora de forma diminuta”.
E aqui chegados, sinceramente, penso que o delírio atingiu o auge.
“Perigo de fuga de forma diminuta”?
Mas o que significa isto?
Claro que, na internet, surgiram logo as explicações dos experts em escárnio e mal dizer:
“Deve ser fuga ao pé coxinho”, “fugir com o saque do BES às costas” ou “fugir carregado com os sacos das promessas, não cumpridas, do Passos Coelho”.
Também houve quem garantisse que era um novo conceito jurídico criado por um cérebro diminuto.
A realidade é que o arguido continua na cadeia.
A realidade é que, todos os dias, aparecem com novas “razões” para a sua prisão.
A realidade é que, ainda hoje, ninguém sabe – nem o arguido nem o seu defensor – dos verdadeiros motivos, que deveriam ser fundamentados em indícios fortíssimos, para justificarem a sua prisão.
Com a recusa da troca de uma cela por uma pulseira electrónica, que o impediria de sair de casa, o cidadão José Sócrates fez-me recordar uma frase atribuída a Giordano Bruno, um condenado à morte na fogueira, pela Inquisição Romana (Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício), por heresia, ao defender erros teológicos e pela defesa do heliocentrismo de Copérnico.
Disse ele, após a Sentença:
“Maiori forsan cum timore sententiam in me fertis quam ego accipiam.” ("Talvez sintam maior temor ao pronunciar esta sentença do que eu ao ouvi-la")
Se acreditasse que esta gente tem consciência… poderia subscrever estas palavras.

Dê Moníaco, no jornal 'Região Bairradina' de 11 de Junho de 2015