Li-o aos 15 anos e ainda não me atrevi a relê-lo. "A Mãe", de Gorki, é o livro da minha vida.
A força tranquila com que a mãe, viúva, encoraja o filho Pavel a insurgir-se contra a exploração desenfreada e a existência triste, miserável e desgraçada dos trabalhadores russos, ao tempo do czar Nicolau II, foi o gatilho que canalizou os ímpetos da minha rebeldia adolescente contra as gritantes desigualdades entre ricos e pobres que eram a marca de água do regime capitalista que o Estado Novo defendia com unhas e dentes.
Posteriores leituras tornaram-me defensor da igualdade e do "a cada um segundo as suas necessidades, de cada um segundo as suas possibilidades". Mas não precisei de ouvir a estrondosa queda do Muro de Berlim para perceber o falhanço épico de todas as tentativas de levar à prática os generosos princípios marxistas e corrigir o tiro das minhas convicções.
A igualdade de oportunidades e perante as leis, para todos os cidadãos, é princípio inabalável do meu catecismo, ao lado da feroz e republicana oposição à transmissão de poder de pai para filho, caraterística das anacrónicas monarquias.
Passei a adepto da meritocracia e a aceitar alguma desigualdade, contanto que temperada pela solidariedade. Quem trabalha mais e melhor merece ganhar mais do que os preguiçosos e negligentes. Quem cria emprego e gera riqueza merece ter mais do que quem não arrisca sair da zona de conforto.
Mas esta desigualdade virtuosa, que é o sal da prosperidade, tem de ser mantida numa banda razoável e travada quando se torna excessiva, como está agora a acontecer, de acordo com o economista francês Thomas Piketty, no seu livro "O Capital no Século XXI", que Paul Krugman diz ser "uma magnífica e arrebatadora meditação sobre a desigualdade".
Piketty demonstra que, ao longo do último século, a tendência geral foi para os ricos ficarem mais ricos, enquanto que as pessoas cujos rendimentos provêm do trabalho se tornaram mais pobres, e afirma que a desigualdade continuará a agravar-se porque os rendimentos do capital vão crescer mais depressa do que os rendimentos totais dos países.
De acordo com a OCDE, o peso do 1% de portugueses mais ricos no total dos rendimentos da população mais que duplicou nas últimas três décadas, aproximando-se dos 10%. Neste período, nos 18 países do mundo industrializado, a tendência nítida de aumento da desigualdade só foi mais forte nos EUA e no Reino Unido. As estatísticas dizem-nos que o aumento da desigualdade é anterior à austeridade e indiciam que o ajustamento não está a corrigir as assimetrias sociais, pois, entre 2011 e 2012, a diferença de rendimentos entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres agravou-se.
Para inverter esta tendência, Piketty propõe um imposto mundial sobre a riqueza. O caminho pode não ser esse. Mas o assunto é como travar o aumento da desigualdade. Os políticos, comentadores e juízes do Constitucional que não percebem isto estão a desconversar e a contribuir para que Portugal continue a ser o país da UE onde há mais desigualdade intelectual, pois os pobres de espírito estão cada vez mais pobres - e os ricos de espírito estão cada vez mais ricos.
Jorge Fiel, aqui