quinta-feira, 22 de maio de 2014

OS ADVOGADOS DO DIABO. QUANTOS GRAMAS PESA A CONSCIÊNCIA NA HORA DE DEFENDER UM CRIMINOSO

Da fama Paulo Sá e Cunha já não se livra. Até a ex-mulher, na brincadeira, lhe chamava "advogado do diabo"

Na lista de casos que já defendeu há de tudo: burlões, supostos homicidas, acusados de abusos sexuais ou de violência doméstica. Vítor Raposo (sócio de Duarte Lima) no Homeland, Manuel Abrantes no processo Casa Pia, o ex-director do Instituto Nacional do Sangue no caso dos hemofílicos ou Manuel Maria Carrilho na queixa apresentada por Bárbara Guimarães são só alguns dos exemplos. 

Há casos, como os de direito da família, em que não pega há anos. Mas não se recorda de alguma vez ter recusado uma causa porque a sua consciência não permitia. "Trabalhando eu na área criminal, por mais confusão que isto faça a quem está de fora, tenho como dever assegurar a defesa de todos os arguidos, até do criminoso mais infame", explica ao i o penalista.

Como é que se defende alguém que a maior parte das pessoas dirá não ter defesa possível? Que fez algo que a praça pública rotulou de hediondo? Que enganou, violou, abusou de crianças, esquartejou ou simplesmente matou? Tendo por base duas convicções, dirá a maioria dos advogados: qualquer um tem direito a defesa e defender alguém no banco dos réus não é apenas alegar a sua inocência.

Às vezes, como dirá Carla Bettencourt, advogada de António Costa, o serial killer de Santa Comba Dão, é simplesmente ajudar o arguido a não ser condenado por actos que não ficaram provados. Outras vezes, dirá Fernando Carvalhal, advogado de Rei Ghob, é entrar na cabeça do criminoso, conhecer a sua história familiar e clínica e explicar ao tribunal porque fez o que fez.

"Não tenho a pretensão de achar que só defendo inocentes", avisa Paulo Sá e Cunha. Aliás, o mais provável é ouvir um advogado dizer que isso só aconteceria num mundo romântico. 

Trabalhar na advocacia é ganhar a vida a defender inocentes, sim - que também os há, garantem -, mas também bandidos. "A história de só ter clientes inocentes é o sonho de qualquer advogado que faz crime, mas não existe. Até porque a injustiça judiciária não é muito comum", diz João Medeiros.

No baú do advogado da PLMJ há acusados de homicídio por negligência e homicídio doloso, há os mediáticos, como o ex-banqueiro João Rendeiro ou o antigo espião Silva Carvalho, e vigaristas com fartura. "A alguns até lhes acho uma certa graça. Já tive um burlão profissional que antes do processo chegar ao fim já estava a tentar fazer um negócio do género comigo", conta ao i.

HÁ LIMITES? 
O mais difícil em defender os homens ou as mulheres de que muitos nem se quereriam aproximar é explicá-lo às crianças. Uma coisa é levar com a piada recorrente dos amigos que dizem que os seus clientes são "eternas vítimas de uma cabala", outra é fazer com que os filhos entendam que a sua vida é andar pelos tribunais e nem sempre a fazer a defesa dos chamados bons da fita: "O meu filho pergunta-me o que faço. Digo que defendo pessoas. Os inocentes? - pergunta-me ele." João Medeiros responde que por vezes também defende os maus. O miúdo pergunta logo a seguir: "Então o pai também é mau?"

Ainda assim, o advogado admite que cada um terá os seus limites: "Só posso defender uma pessoa até ao limite do que sou capaz. Se um tipo de crime me fizer muita confusão mais vale passar a um colega." As fronteiras que traçou são os dois crimes com que não trabalha: o abuso sexual de menores, porque lhe faz "tanto asco que não conseguiria fazer uma defesa séria", e o tráfico de droga, porque "se agarra" aos advogados: "Normalmente é uma área em que se ganha muito bem, mas se corre mal é fácil receber ameaças direccionadas à família."

Paulo Sá e Cunha reconhece que um dos trabalhos mais difíceis que teve em mãos foi defender o ex-provedor da Casa Pia Manuel Abrantes: "Pela mediatização e pelo fortíssimo preconceito que acaba por contaminar a visão que se tem das provas." Além disso, havia um "autêntico clima de caça às bruxas", recorda o advogado, que começou por ser procurado por Manuel Abrantes quando o nome do ex--provedor apareceu na praça pública como aliado de Carlos Silvino. Só mais tarde, no dia 1 de Abril de 2003, o cliente foi preso preventivamente: "Nunca me passou pela cabeça deixar de o representar, mesmo nas piores circunstâncias."

Ainda hoje mantém a convicção de que Abrantes é inocente, mas defenderia da mesma maneira um culpado: "Há muita gente que acha que os males do cliente se pegam ao advogado por uma espécie de osmose. Sou pai de seis filhos e não tenho simpatia por pedófilos. Mas nunca podemos raciocinar numa lógica de "e se fosse connosco?" Caso contrário, avisa o penalista, não há qualquer hipótese de fazer um bom trabalho.

OS EXTREMOS
Quem souber que Fernando Carvalhal defendeu Francisco Leitão provavelmente não tremerá tanto quando souber que Francisco Leitão é o homem que ficou conhecido como Rei Ghob, acusado de matar e esconder os cadáveres de quatro pessoas e condenado a 25 anos de prisão pelo homicídio de três. Quando no Verão de 2010 recebeu um telefonema para saber se estava disposto a defendê-lo, aceitou marcar uma conversa sem hesitar. Depois disso não teve dúvidas em defendê-lo.

O advogado sabia que estava perante um homem sinistro, que vivia num castelo com masmorra e tudo. Sabia também que o homem se proclamava "rei dos gnomos" e se entretinha a divulgar vídeos na internet a anunciar o fim do mundo. Francisco Leitão, contudo, nunca quis reclamar a sua inocência: "A defesa de uma pessoa em matéria penal não é negar aquilo que faz. É defendê-la de forma que a sua responsabilidade seja bem apurada. Achar que um advogado é sempre o contraponto da acusação é uma visão de há 20 anos. Hoje é mais um colaborador na acção da justiça."

Aceite o patrocínio, Fernando Carvalhal iniciou uma missão difícil: tentar provar em tribunal que o seu cliente terá feito o que fez devido a um historial de 30 anos como vítima de violência. Na sua carteira de clientes estão traficantes de droga, arguidos acusados de associação criminosa e até, numa fase inicial do processo, Maria das Dores, a socialite condenada a 23 anos de prisão por encomendar a morte do marido.

Carla Bettencourt, advogada com escritório na Figueira da Foz, já tinha tido casos que poderiam apelar à objecção de consciência mas, num país em que a maior parte das pessoas que mata não o repete, estaria longe de imaginar que um dia lhe cairia nas mãos o processo de um assassino em série. A advogada mergulhou no caso de António Costa, o ex-cabo da GNR que em 2006 ficou conhecido como o serial killer de Santa Comba Dão, depois de ser procurada pela família. A primeira coisa a fazer antes de decidir, diz, é analisar o caso que se tem em mãos: "A família dizia que não era verdade. Aquela pessoa até pode mentir-nos, mas é preciso ver as provas que estão reunidas. Naquela fase só tinha acesso a partes do processo e aí já sabia que havia dúvidas. Ainda hoje, há muita coisa que não ficou provada."

Além da vontade de fazer cumprir a lei, a advogada não nega que também se moveu pela vontade de sossegar a família: "As pessoas esquecem-se muito do outro lado. São pessoas que ainda hoje, não tendo feito nada, são insultadas quando vão à rua." Se é uma oportunidade de projecção para qualquer advogado? Será. "Mas também há o lado mau. 

Para os meus colegas que estavam ali no julgamento só posso ser uma pessoa horrível", diz.

Sílvia Caneco, aqui