Da fama Paulo Sá e Cunha já não se livra. Até a ex-mulher, na brincadeira, lhe chamava "advogado do diabo".
Na lista de casos que já defendeu há de tudo: burlões, supostos homicidas, acusados de abusos sexuais ou de violência doméstica. Vítor Raposo (sócio de Duarte Lima) no Homeland, Manuel Abrantes no processo Casa Pia, o ex-director do Instituto Nacional do Sangue no caso dos hemofílicos ou Manuel Maria Carrilho na queixa apresentada por Bárbara Guimarães são só alguns dos exemplos.
Como é que se defende alguém que a maior parte das pessoas dirá não ter defesa possível? Que fez algo que a praça pública rotulou de hediondo? Que enganou, violou, abusou de crianças, esquartejou ou simplesmente matou? Tendo por base duas convicções, dirá a maioria dos advogados: qualquer um tem direito a defesa e defender alguém no banco dos réus não é apenas alegar a sua inocência.
Às vezes, como dirá Carla Bettencourt, advogada de António Costa, o serial killer de Santa Comba Dão, é simplesmente ajudar o arguido a não ser condenado por actos que não ficaram provados. Outras vezes, dirá Fernando Carvalhal, advogado de Rei Ghob, é entrar na cabeça do criminoso, conhecer a sua história familiar e clínica e explicar ao tribunal porque fez o que fez.
"Não tenho a pretensão de achar que só defendo inocentes", avisa Paulo Sá e Cunha. Aliás, o mais provável é ouvir um advogado dizer que isso só aconteceria num mundo romântico.
Trabalhar na advocacia é ganhar a vida a defender inocentes, sim - que também os há, garantem -, mas também bandidos. "A história de só ter clientes inocentes é o sonho de qualquer advogado que faz crime, mas não existe. Até porque a injustiça judiciária não é muito comum", diz João Medeiros.
No baú do advogado da PLMJ há acusados de homicídio por negligência e homicídio doloso, há os mediáticos, como o ex-banqueiro João Rendeiro ou o antigo espião Silva Carvalho, e vigaristas com fartura. "A alguns até lhes acho uma certa graça. Já tive um burlão profissional que antes do processo chegar ao fim já estava a tentar fazer um negócio do género comigo", conta ao i.
HÁ LIMITES?
O mais difícil em defender os homens ou as mulheres de que muitos nem se quereriam aproximar é explicá-lo às crianças. Uma coisa é levar com a piada recorrente dos amigos que dizem que os seus clientes são "eternas vítimas de uma cabala", outra é fazer com que os filhos entendam que a sua vida é andar pelos tribunais e nem sempre a fazer a defesa dos chamados bons da fita: "O meu filho pergunta-me o que faço. Digo que defendo pessoas. Os inocentes? - pergunta-me ele." João Medeiros responde que por vezes também defende os maus. O miúdo pergunta logo a seguir: "Então o pai também é mau?"
Ainda assim, o advogado admite que cada um terá os seus limites: "Só posso defender uma pessoa até ao limite do que sou capaz. Se um tipo de crime me fizer muita confusão mais vale passar a um colega." As fronteiras que traçou são os dois crimes com que não trabalha: o abuso sexual de menores, porque lhe faz "tanto asco que não conseguiria fazer uma defesa séria", e o tráfico de droga, porque "se agarra" aos advogados: "Normalmente é uma área em que se ganha muito bem, mas se corre mal é fácil receber ameaças direccionadas à família."
Paulo Sá e Cunha reconhece que um dos trabalhos mais difíceis que teve em mãos foi defender o ex-provedor da Casa Pia Manuel Abrantes: "Pela mediatização e pelo fortíssimo preconceito que acaba por contaminar a visão que se tem das provas." Além disso, havia um "autêntico clima de caça às bruxas", recorda o advogado, que começou por ser procurado por Manuel Abrantes quando o nome do ex--provedor apareceu na praça pública como aliado de Carlos Silvino. Só mais tarde, no dia 1 de Abril de 2003, o cliente foi preso preventivamente: "Nunca me passou pela cabeça deixar de o representar, mesmo nas piores circunstâncias."
Ainda hoje mantém a convicção de que Abrantes é inocente, mas defenderia da mesma maneira um culpado: "Há muita gente que acha que os males do cliente se pegam ao advogado por uma espécie de osmose. Sou pai de seis filhos e não tenho simpatia por pedófilos. Mas nunca podemos raciocinar numa lógica de "e se fosse connosco?" Caso contrário, avisa o penalista, não há qualquer hipótese de fazer um bom trabalho.
OS EXTREMOS
Quem souber que Fernando Carvalhal defendeu Francisco Leitão provavelmente não tremerá tanto quando souber que Francisco Leitão é o homem que ficou conhecido como Rei Ghob, acusado de matar e esconder os cadáveres de quatro pessoas e condenado a 25 anos de prisão pelo homicídio de três. Quando no Verão de 2010 recebeu um telefonema para saber se estava disposto a defendê-lo, aceitou marcar uma conversa sem hesitar. Depois disso não teve dúvidas em defendê-lo.
O advogado sabia que estava perante um homem sinistro, que vivia num castelo com masmorra e tudo. Sabia também que o homem se proclamava "rei dos gnomos" e se entretinha a divulgar vídeos na internet a anunciar o fim do mundo. Francisco Leitão, contudo, nunca quis reclamar a sua inocência: "A defesa de uma pessoa em matéria penal não é negar aquilo que faz. É defendê-la de forma que a sua responsabilidade seja bem apurada. Achar que um advogado é sempre o contraponto da acusação é uma visão de há 20 anos. Hoje é mais um colaborador na acção da justiça."
Aceite o patrocínio, Fernando Carvalhal iniciou uma missão difícil: tentar provar em tribunal que o seu cliente terá feito o que fez devido a um historial de 30 anos como vítima de violência. Na sua carteira de clientes estão traficantes de droga, arguidos acusados de associação criminosa e até, numa fase inicial do processo, Maria das Dores, a socialite condenada a 23 anos de prisão por encomendar a morte do marido.
Carla Bettencourt, advogada com escritório na Figueira da Foz, já tinha tido casos que poderiam apelar à objecção de consciência mas, num país em que a maior parte das pessoas que mata não o repete, estaria longe de imaginar que um dia lhe cairia nas mãos o processo de um assassino em série. A advogada mergulhou no caso de António Costa, o ex-cabo da GNR que em 2006 ficou conhecido como o serial killer de Santa Comba Dão, depois de ser procurada pela família. A primeira coisa a fazer antes de decidir, diz, é analisar o caso que se tem em mãos: "A família dizia que não era verdade. Aquela pessoa até pode mentir-nos, mas é preciso ver as provas que estão reunidas. Naquela fase só tinha acesso a partes do processo e aí já sabia que havia dúvidas. Ainda hoje, há muita coisa que não ficou provada."
Além da vontade de fazer cumprir a lei, a advogada não nega que também se moveu pela vontade de sossegar a família: "As pessoas esquecem-se muito do outro lado. São pessoas que ainda hoje, não tendo feito nada, são insultadas quando vão à rua." Se é uma oportunidade de projecção para qualquer advogado? Será. "Mas também há o lado mau.
Para os meus colegas que estavam ali no julgamento só posso ser uma pessoa horrível", diz.
Sílvia Caneco, aqui