Só que de seguida nós líamos a notícia e descobríamos uma realidade bastante diferente: o hospital não queria deixar sair Rosa; a doente insistiu em ir-se embora, garantindo que ia para casa de familiares; o próprio director do serviço de Pneumologia ofereceu-se para, do seu bolso, lhe pagar um táxi. Diria que enquanto retrato da “indiferença perante a dor” haverá melhores exemplos do que este. Mais: em declarações posteriores à Rádio Renascença, o Instituto da Segurança Social esclareceu que a prestação do RSI de Rosa havia sido “suspensa pela entrega tardia dos documentos necessários à sua renovação”.
É certo que, na sua intervenção na SIC Notícias, Gabriela Canavilhas admitiu a hipótese de Rosa ter saído do hospital a seu próprio pedido (“eventualmente até pode ter sido”), mas para a ex-ministra isso é mero detalhe. Afinal, a História demonstra que quando um bom socialista está imbuído de uma vontade incontida de fazer o bem, o desejo dos indivíduos conta pouco. Para o PS “Razão e coração”, o nosso dever é sempre ajudar o próximo – mesmo que o próximo não queira ser ajudado. É o Estado-papá, arrebanhando-nos para debaixo da sua protectora asa. Com este género de raciocínio, não admira que António José
Seguro tenha prometido há mês e meio acabar com os sem-abrigo no espaço de uma legislatura.
Lamento, mas martelar uma notícia para a fazer encaixar numa narrativa pré-definida tem qualquer coisa de obsceno. Travestido de amor pela humanidade, está-se apenas a manipular o sofrimento alheio para alcançar ganhos políticos. Eu não tenho dúvidas de que a austeridade tenha originado inúmeras injustiças, que merecem ser denunciadas – mas denunciem-nas decentemente, se faz favor. E não transformem a austeridade no bode expiatório de todos os males do mundo, como se ela fosse a serpente que veio estragar o Paraíso. Existe um famoso adágio português que diz que “a culpa morre sempre solteira”. O que estamos a assistir nos últimos tempos é o contrário disso: um desejo imenso de arranjar sempre o mesmo marido para a culpa. Nem que para isso seja preciso arrastá-lo pelos cabelos até ao altar.
José Miguel Tavares, aqui
