quarta-feira, 2 de abril de 2014

SOBRETUDO NAS NUVENS

Dentro de quatro paredes a distância entre o agressor e a vítima é curta. Do mesmo tecto e de alguns velhos hábitos, da "performance" agravada e revista à lupa das rotinas diárias, sobra a paciência que fica para o pouco que resta ou a espiral da desconfiança e do ciúme.

Fica a espada em riste, disposta a tudo menos a ceder complacentemente senão por curtos períodos de abate ou armistício à coacção. Ou então o desinteresse, menos vezes. Quem se desinteressa não puxa tanto pelo físico, dirão os cérebros da elíptica. Os desapaixonados, normalmente, puxam do cinto da psique e desatam a bater com violência nas feridas que se alastram por dentro. 

É assim o ciclo da violência doméstica: o aumento da tensão, o ataque violento e a lua-de-mel para começar tudo de novo, quando tudo se transforma em desculpas mas nada muda. Os crimes de violência doméstica entre casais aumentaram 3,1% em 2013 face ao ano transacto, numa tendência inversa à descida da criminalidade geral. São dados preocupantes mas que só revelam uma realidade escondida pela ideia generalizada de que navegamos no âmbito da esfera privada ou íntima. Neste momento, o "focus" não passou só para a esfera da intervenção das forças de justiça ou de segurança. Falamos, cada vez mais, de saúde pública. Mas há quem tenha outras interpretações.

No século XIX, Oscar Wilde caracterizava a família como sendo "apenas um aborrecido rebanho de gente que não tem o mais remoto conhecimento de como viver nem o menor instinto sobre o momento de morrer". Não iria tão longe. Sabendo que, no ano passado, há notícia de 40 homicídios conjugais, o que mais sobra é instinto e do fatal. Mas Wilde ganha aos pontos na primeira parte da sua sentença sem misericórdia: há quem não tenha o mais remoto conhecimento de como viver. Até porque se vive mal e cada vez pior, o que em muito justifica a subida da criminalidade no interior do país. E depois o debate sobre o papel da família como um factor de protecção da crise e da actual conjuntura recessiva.

A resposta podia ser um afago mas não resiste ao desemprego, à impotência de quem não tem como alimentar ou pagar os estudos dos filhos. Não resiste ao domínio da vergonha, da indignidade e da falta de respeito. Às vezes tudo desaba. E quando sabemos que esta realidade sempre existiu, quando os números não contam nem uma pequena porção da verdade, é perturbante pensar que grande parte da violência doméstica não se confina a quatro paredes ou ao segredo de uma espécie de lar travestido em arma de arremesso. 

Devemos, antes, focalizar-nos no tipo e na natureza das relações que envolvem as pessoas. 

Porque quando desatamos a tentar sobreviver, tudo pode desabar. Sobretudo nas nuvens.

Há sempre muito por contar quando contamos pessoas. Os dados avançados pelo Gabinete Coordenador de Segurança (no Relatório Anual de Segurança Interna) não são mentirosos. Mas são omissos por natureza, como são todos os relatórios e esforços de síntese que tenham por base participações de natureza particular. 

A violência doméstica é um crime público, decerto. Mas a injúria, tantas vezes precursora de maus-tratos ou até de homicídios, depende de uma denúncia particular. Não se pense que é apenas uma formalidade ou uma mera questão de estilo. Para que a denúncia de injúria faça caminho e possa ser investigada é preciso pagar custas e seus derivados, o que afasta muitos (sobretudo, muitas) da queixa e promove a desistência a breve trecho. 

E depois, contemos com a sensibilidade do Ministério Público e dos juízes. Também aqui a pobreza da nossa Justiça é gratuita: quem menos pode pagar, menos acesso à Justiça tem. Mesmo que tratemos de questões tão graves e relevantes como a ameaça ou intimidação de pessoas, entre elas filhos, menores, crianças ou idosos, através de violência física, psicológica ou económica. A evidência desta impotência é uma verdade velada que nenhum relatório nos poderá contar. 

Como nenhum gabinete nos poderá garantir o que quer que seja sobre o processo de confiança numa relação de amor, sobre as promessas veladas e o desapontamento, sobre os esconderijos do desejo e, tantas vezes nestes casos, sobre o adeus que o amor adia.

Retirada daqui