terça-feira, 29 de abril de 2014

ERA UMA VEZ...


A DANÇA PRODIGIOSA
Conta-se que, na Índia, há muito tempo, quando não paravam as guerras entre reis vizinhos por frívolas disputas de terras e riquezas, os vencidos, fossem generais, nobres, senhores poderosos, passavam à condição de escravos dos vencedores. 

No termo de uma dessas lutas, houve festa no palácio conquistado. Depois do banquete da vitória, o chefe dos vencedores exigiu a presença dos músicos e das bailarinas. Estava radioso de felicidade e queria que à sua volta tudo espelhasse a sua alegria de guerreiro triunfador. 
Entre as bailarinas, uma se destacava mais do que as outras. Tinha guizos e sinos em colar, no pescoço, nos braços e nas pernas, que cadenciavam a música, como se cada gesto dela fosse o riso a nascer. 

Mas o rosto da bailarina gentil era sisudo, quase zangado. Belo, muito belo, mas tão ao contrário da jovialidade do corpo, nos seus meneios de dança, que causava uma estranha impressão. 
Um dos convivas reparou no desconcerto e disse-o em voz alta. Outro, a seu lado, explicou: - Não admira. É a princesa, filha do rei deposto. O pai acorrentado na cave e ela a dançar no salão... - Mesmo assim, para quem dança sem vontade muito bem dança - comentou outro conviva. - Embora, melhor dançaria se sorrisse... - Ri - ordenou-lhe o senhor da festa e dos vencedores, tanto como dos vencidos. 
Mas a bailarina nem sorriu. Continuava a dançar, vestida da música, com a felicidade a tinir nos pulsos e nos tornozelos, como se o corpo existisse sozinho, decepado do rosto em luto. - A noite é minha. O palácio é meu. O reino e todos os que nele vivem pertencem-me - clamava o rei dos vencedores. - Tens de rir. 
Ela, muito séria, só dançava. E que bem dançava! Maravilhavam-se, à sua roda, porque nunca tinham visto dançar assim, com tanta graça, tanta leveza de pluma, pétala, brisa, asa, perfume... 
Então, o comandante, de coração rendido, proclamou: - Libertem de vez o rei vencido. Quero-o, aqui, ao nosso lado, a ver a filha dançar. 
Uma labareda de guizos e risos correu, rolou, adejou pelas arcarias do palácio. Os músicos atónitos ouviram a música, que eles não tocavam, desprender-se, intacta, dos seus instrumentos e engrinaldar de alegria redopiante a princesa dançarina. 
Nenhuma bailarina dançou, em gestos de riso, em olhos e lábios iluminados de riso, como, naquela noite, a princesa dançou... E por muitos mais anos se contará a história da dança prodigiosa, que fez pulsar, em triunfo, a harmonia da música nos corações dos homens, vencedores ou vencidos...


António Torrado | Cristina Malaquias, aqui