terça-feira, 15 de abril de 2014

DURÃO BARROSO E A INVEJA

Numa manhã de Junho de 2004 recebi uma chamada telefónica de Durão Barroso.

Disse-me que Jacques Chirac, o Presidente francês, acabava de lhe comunicar o seu apoio para presidente da Comissão Europeia - e esse apoio, somado aos incentivos para avançar que tinha recebido de outros chefes de Governo, garantia-lhe a escolha para o cargo.

Eu era das primeiras pessoas a quem ele falava depois do telefonema de Chirac - e queria saber a minha opinião.

Disse-lhe espontaneamente que deveria aceitar. «Esse é um cavalo que não passa duas vezes à mesma porta» - comentei.

Contrapôs-me que não podia pensar só nos seus interesses, porque acima de tudo estava o interesse do país.

E adiantou que iriam acusá-lo de fugir às responsabilidades e à crise aqui em Portugal.

Respondi-lhe qualquer coisa como: «Nos cá nos arranjaremos. Mas muito dificilmente haverá nova oportunidade de um português ser presidente da Comissão Europeia».

Nunca pensei que a sua decisão de aceitar o lugar provocasse tantas reacções negativas em Portugal.

Não previ que o acusassem tanto de ter «fugido» - pois, de facto, não fugiu a nada: foi convidado para um cargo notoriamente mais importante e aceitou.

Julguei, também, que o nacionalismo falasse mais alto.

Em geral, nós orgulhamo-nos do sucesso dos portugueses no estrangeiro - seja de António Damásio ou de José Mourinho.

Mas com Durão Barroso sucedeu o contrário.

Uma das primeiras vozes a atacá-lo foi Mário Soares - que falhara a eleição para presidente do Parlamento Europeu, derrotado pela francesa Nicole Fontaine, e não lidou bem com o sucesso de Barroso.

Mas aqui tratava-se claramente de despeito: depois de um insucesso internacional, Soares tinha dificuldade em aceitar que Barroso fosse escolhido para desempenhar um cargo europeu, ainda por cima muito mais importante.

Mas, se a reacção de Soares podia ser levada à conta de uma questão pessoal, atrás dele vieram outros socialistas engrossar o coro.

Não tardou muito para começarem a dizer que faltava liderança à Europa, que não havia grandes figuras, que Merkel punha e dispunha, etc. - o que, mesmo quando o nome de Barroso não era referido, comportava uma crítica implícita ao seu desempenho.

Queriam talvez que ele partisse a louça, que cortasse relações com a 'senhora Merkel' e desse o grito do Ipiranga, liderando uma revolta com origem no Berlaymont.

Era a eterna incapacidade dos socialistas para avaliarem a realidade, caminhando invariavelmente de ilusão em ilusão.

Diga-se em abono da verdade que nem só os socialistas o atacaram.

Destacados militantes do seu partido, como Santana Lopes ou Marcelo Rebelo de Sousa - este mais sibilinamente -, foram-lhe sempre lançando uns dardos envenenados, na expectativa de que poderiam vir um dia a enfrentá-lo.

Agora, é Sócrates que vem falar de um «mandato medíocre» de Barroso na Comissão Europeia.

Será mesmo?

Esta crítica segue-se a uma entrevista em que Barroso disse o que não devia, pondo-se a comentar a política interna portuguesa.

Não faz qualquer sentido, de facto, um alto funcionário europeu emitir juízos de valor sobre questões internas de um Estado-membro.

Ao falar de Sócrates, de Manuela Ferreira Leite, de Bagão Félix, de Constâncio, Durão Barroso pisou o risco.

Isso não legitima, porém, um ataque de sentido oposto, ou seja, ao seu trabalho à frente da Comissão.

Mas como foi, então, o mandato de Barroso em Bruxelas?

Primeiro, convém precisar que não foi 'um mandato' mas sim dois: depois do 'super-Delors', Durão Barroso é o primeiro presidente da Comissão Europeia a cumprir dois mandatos.

E isso quer logo dizer alguma coisa.

Outros só fizeram um mandato ou nem sequer o completaram…

Depois, Durão desempenhou o cargo em circunstâncias dificílimas, num tempo de problemas financeiros e sociais sem precedentes na Europa comunitária, com Grécia, Chipre, Portugal, Irlanda, Itália e Espanha a enfrentarem crises tremendas e com o eixo Paris-Berlim a fazer uma enorme pressão para se impor.

E neste período assistiu-se, ainda, ao despertar da Rússia.

Ora, com tudo isto a acontecer, muita boa gente previu que a União Europeia fosse implodir ou pelo menos se dividisse entre Norte e Sul, que o euro rebentasse, que Portugal e a Grécia tivessem de sair, etc.

Mas nada disto aconteceu.

No momento em que Durão Barroso deixa o cargo, a Europa apesar de tudo continua unida, o euro resistiu e permanece forte, e - last but not least - a Comissão fez um trabalho limpo, sem escândalos a manchá-lo.

Muitos dos que falam destes assuntos não fazem a mais pequena ideia do que significa o esforço de coordenação política de 28 Estados, muitas vezes com interesses divergentes, com objectivos contraditórios e com eleitorados nacionais a pressionarem os governantes num sentido não europeísta.

É um trabalho homérico, do qual Barroso saiu por cima, respeitado pelos seus pares.

As críticas a Durão Barroso dizem muito sobre aquilo que somos.

Por um lado, somos politicamente fanáticos: a esquerda, pelo simples facto de o ser, tinha de atacar Barroso.

Por outro lado, somos incorrigivelmente invejosos, como já notava Camões.

Ao longo dos últimos 10 anos, todos os pretextos foram bons para desvalorizar a sua função e o seu trabalho.

E isto é deveras original.

Se o presidente da Comissão Europeia fosse um espanhol, seria normal haver tantos espanhóis a atacarem-no, inclusivamente um ex-chefe do Governo?

Na maior parte dos países, a solidariedade nacional funciona.

Em Portugal, a politiquice e a inveja falam mais alto.

José António Saraiva, aqui