A única praxe académica que conheci e vivi com fervor, foi a que foi retomada
em Coimbra em 1980, depois do luto académico de 1969, que assegurava em
cada ano a ‘tomada da Bastilha’, a ‘latada’ e a ‘queima das fitas’ como acontecimentos sazonais que não só regulavam o calendário universitário mas também o da
própria cidade, e que nada tem a
ver com a que por aí vai grassando.
Na ‘tomada da Bastilha’ e na festa das latas, que era simultaneamente de
imposição de insígnias e também
conhecida por festa de recepção aos
recém-chegados caloiros, estes eram assustadora mas inofensivamente avisados
pelos veteranos, e logo recebiam uma verdadeira aula de
introdução à praxe, em que pela primeira vez ouviam termos estranhos como
‘semi-putos’, ‘putos’ ‘grelados’, ‘fitados’ ou ‘veteranos’, ‘futricas’, ‘trupes’
e ‘doutores’, para logo de seguida aceitarem a ‘protecção’ de um colega mais velho, que
daí em diante assumia o espinhoso cargo de padrinho.
E com este espírito de
verdadeiro acolhimento e integração dos novos alunos da academia, lá se chegava
ao final da primavera, altura a partir da qual essa integração passava a
envolver serenatas e outras cantigas, algumas mesmo do bandido que por vezes
até levavam a que se saltasse de varandas em trajos mais do que menores, e que
em maré de sorte até davam direito a cestinhos de verga a descer das janelas
dos lares de freiras e não só, presos pelas cordas que durante o dia serviam
para secar a roupa, abarrotados com garrafas de bom vinho e fatias dos bolos
que as donzelas traziam para Coimbra depois dos fins-de-semana de descanso que
passavam com as mamãs e os papás; alguns, com mais sorte, recebiam mesmo um
bilhetinho com a indicação de uma hora e local para encontro, que isso de
telemóveis e facebook nunca ninguém tinha sequer ouvido dizer que existia!
Quanto à Queima das Fitas, considerado o ponto alto da praxe académica,
consagrava uma infindável lista de eventos, encabeçados pelas noites dedicadas
a cada uma das faculdades, e que se iniciavam com uma serenata monumental (até
sempre, Tó Nogueira!) seguida de uma ceia dos boémios onde a ordem era para
comer e beber à fartazana (lembram-se, António Bettencourt e Carlos Costa?), de
um sarau cultural (que memoráveis actuações da Orquestra Típica e Rancho onde
pontuavam a Paula Andrade e o Xico Pintanas, e da Orxestra Pitagórica onde
sobressaía o José Seco, o Nini e o Quim Reis!) que se prolongava pela madrugada entre os gansos que
se passeavam pelos lagos do jardim da avenida e a praça da república, de um
baile de gala (que honra tive na abertura de 14 de Maio de 1983!) de onde se
saía ao alvorecer com a maioria a cair de sono e uns tantos já com um grão na
asa, até se embarcar de combóio em direcção à Figueira da Foz (alô Joaquim Troça!)
para marcar presença na garraiada (Chico Polícia, foste o maior!) que aí se
realizava na praça de touros, de um cortejo universitário (em 1983 o carro dos JURISimprudentes
até teve uma deusa a empunhar a espada de um dos archeiros de serviço na Porta
Férrea!) onde professores e alunos se colocam segundo a hierarquia
das faculdades, e de um chá
dançante (com o Pedro palhaço sempre a somar!): uma apoteótica sucessão de
eventos em que, não raramente, nasciam amores tão intensos quanto efémeros.
Esta pois a praxe que vivi, uma praxe benévola, inofensiva e até mesmo piegas
e quase romântica, e que continuo a
reconhecer como verdadeira emanação do espírito académico com vista à
integração dos novos alunos no ambiente universitário.
Com a proliferação de universidades e politécnicos, o modelo coimbrão acabou
por ser implantado noutras paragens, sofrendo natural adaptação aos traços de cada local, e assim conduzindo à criação de
projectos identitários de cada campo universitário.
Só que, de mão dada com esta
adaptação andou a transformação social e política da sociedade portuguesa,
conduzindo à transmutação da praxe em incompreensíveis cambiantes de selvajaria e
repugnância, a até mesmo de sadismo e tirania associadas a incomensuráveis
doses de estupidez e ordinarice.
E se há trinta anos os caloiros podiam ser submetidos
a provas de oratória, pelas quais tanto lhes era exigida argumentação para a
defesa do bicho do caruncho num processo virtual onde este lenhívoro estava
acusado de assédio por comer umas secretárias, como declarações de amor eterno
à(o)s agentes da autoridade que se encontrassem no local, ou até mesmo que
medissem com paus de fósforos o diâmetro da praça da república ou subissem e
descessem de costas voltadas os 5 vãos de 25 degraus cada das escadas
monumentais, o que hoje se vê é a passagem pelos campos universitários e não só, de
filas indianas de caloiros presos por cordas, com caras pintadas e orelhas de
burro, conduzidos por uns paspalhões com ar de pastores que de colher de pau em
riste vão ditando posturas
de humilhação e submissão que vão desde as inenarráveis flexões às simulações
sexuais, invariavelmente acompanhadas por um palavreado indecoroso, sem
qualquer lógica ou sentido de integração na vida académica do ensino superior.
Onde antes havia liberdade e unanimidade espontânea
entre praxante e praxado no âmbito de uma praxe flexível e amistosa, hoje há
libertinagem e imposição de unanimismo
dos praxante quanto a humilhações pesadas e deprimentes, invariavelmente praticadas em violação ao código da praxe
que determina que a praxe, no sentido de acção de praxar, seja
efectuada entre pessoas do mesmo sexo.
Nada que espante, afinal,
numa sociedade que parece ter perdido, em definitivo, as suas referências e valores morais, onde a cortesia deu lugar à má educação,
onde se cultiva o insulto em detrimento do (agora anacrónico) cavalheirismo,
onde o linguajar parece ter substituído de vez a linguagem comunicacional e
onde a boçalidade parece ter-se tornado cultura dominante, tão dominante que
até tem exposição pública garantida até à exaustão por canais de televisão que
têm nestas misérias da natureza humana a garantia das suas elevadas audiências.
E tudo isto, claro,
perante a indiferença de governos que em detrimento do mérito são compostos em
função da militância partidária, e que assobiando para o lado e fazendo de
conta que não é nada consigo, apenas
reconhecem como tal os problemas que têm eco na comunicação social.
E quando assim é, não é meco que resista.
Versão integral do artigo de opinião publicado nos jornais 'Região de Águeda' e 'Jornal da Bairrada' de 5 e 6 de Fevereiro de 2014, respectivamente, o qual não inclui o texto aqui publicado a azul.