terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A FALSIFICAÇÃO DO SENTIMENTO PATRIÓTICO

Tenho respeito e até simpatia pelos organizadores do 1º Dezembro. Tenho simpatia pela data e pela sua simbologia, não acho sequer que o fim dos feriados contribua em algo importante para a produtividade. Mas não gosto das falsificações históricas pródigas nestas datas.

António Costa, o presidente da Câmara de Lisboa e insuspeito de saudosismos, certamente levado pelo impulso da atualidade, afirmou ontem: os portugueses têm de fazer da "resistência, da decisão e da tenacidade o meio para ultrapassar os obstáculos e vencer o que parecia invencível". Invocando o espírito dos restauradores de 1640 a frase parece fazer sentido, mas tem um truque que necessita ser desmontado.

Em primeiro lugar, aquilo a que se chama a revolução de 1640 (e a que outros, mais certa e moderadamente, nomeiam restauração) não teve chama patriótica nem popular. Houve 40 conjurados (na realidade parece que foram mais, a maioria deles fidalgos e nobres que tinham ficado excluídos das benesses dos Habsburgo - família dos Filipes), em grande parte filhos segundos que não queriam pagar mais impostos (que a guerra europeia exigia) e menos ainda ir para a guerra da Catalunha. 

Decidiram, pois, um golpe, face a um momento particularmente impopular do rei Filipe IV (Filipe III de Portugal, saliente-se que nunca houve junção dos dois reinos num só país, mas dois países com o mesmo rei). Foi um golpe palaciano, que nada tem a ver com o de 1383 que abre a crise dinástica para a Casa de Avis.

O próprio Duque de Bragança só veio de Vila Viçosa no dia 6, depois de ter a certeza de que tudo corria pelo melhor, para ser aclamado rei no Terreiro do Paço, mesmo antes de as Cortes lhe confirmarem o trono (ao contrário do seu antepassado de Avis). A guerra que se seguiu contra Espanha, envolvida na mais vasta guerra dos 30 anos que dominava a Europa, foi altamente vantajosa para o lado português, tanto mais que a Catalunha tinha aproveitado a mesma oportunidade para jogar cartada semelhante (e mais preocupante para Madrid).

O dia 1 de Dezembro foi, aliás, um dia sem história até meados do século XIX, altura em que os nacionalismos se exacerbaram em toda a Europa e Portugal quis ter o seu dia refundacional.
Ora, confundir isto com resistência popular e tenacidade é romântico, mas não é verdade. E contribui para uma espécie de falsificação histórica que podia ser afastada. A defenestração de Miguel de Vasconcelos, considerado o traidor por excelência, foi uma cópia das defenestrações de Praga que tinham ocorrido 22 anos antes.

No fundo, um conjunto de famílias substituiu outro. A Marquesa de Montalvão dizia que cada uma dessas famílias cuidava ter o rei na mão porque ele era rei por "feitura sua". Na verdade, a participação popular foi mínima e a posteriori. E diz-se que quem fez D. João avançar para aceitar o cargo de monarca foi a sua mulher - a célebre D. Luísa de Gusmão, que terá dito "mais vale ser rainha um dia do que duquesa toda a vida". O que raramente é referido é que D. Luísa era filha dos duques de Medina Sidónia, uma das mais importantes famílias dos chamados Grandes de Espanha.

Não há dúvida. Muitos falam em nome do povo, mas o povo verdadeiramente tem menos a ver com estes patrioteirismos do que os "grandes" querem fazer crer.

Retirada daqui