Poucas circunstâncias fazem prever o que nos pode acontecer.
No entanto, há
sinais, porventura escassos e pouco nítidos, que ajudam quem estiver atento. Sei
umas coisas destas coisas, e aprendi que não há nada que se consiga sem luta, e
que não há luta sem sofrimento.
Venho dos bairros pobres e do tempo em que os
miúdos como eu jogavam à bola descalços, ou com umas sandálias que os nossos
pais mandavam capear com restos de pneus.
Os pés feriam-se com pedaços de vidros
de garrafa, com puas ou com pregos enferrujados; as sandálias tinham de durar
pelo menos dois anos. Havia apenas magras formas de enfrentar o destino:
resistir ou abdicar dos sonhos. Resistir seria tentar aprender com leituras nas
bibliotecas operárias ou escolares; abdicar era seguir o fadário das oficinas,
das fábricas, do trabalho penoso de oito, dez e mais horas, ou entrar na
gandulagem: roubar, assaltar, agredir para sobreviver.
Recordo-me de o meu pai a avisar: não permitas que te roubem os sonhos. Quis
ser toureiro, pugilista, aviador. No fundo desejava fugir da tristeza viscosa
daquela miséria. Dei nisto: num curador de frases, num cuidador de palavras que
serão sempre as dos outros. O meu pai morreu à minha espera, assim como a minha
avó, conhecida pela Palhaça. Um dia destes hei-de contar a história destas
esperas, que contêm algo de sobressaltante e de misterioso. Um dia destes. Os
meus filhos sabem--nas. Os meus netos têm de as conhecer.
O Velho Bastos era tipógrafo, construtor de jornais, levemente anarquista,
grande jogador de póquer e de burro americano. Amava o ofício, com a paixão de
quem não sabe fazer outra coisa. Na oficina do Diário Popular colocava um rolo
de papel atado no abdómen, para não sujar as calças de tinta, e transformava os
caracteres tipográficos em qualquer coisa de grandioso. Suava em bica e era um
homem feliz, porque sabia a importância gloriosa do seu trabalho. Aos sábados ia
com os seus camaradas beber e petiscar nas tabernas da Mouraria, onde o vinho
procedia directamente do lavrador. Numa dessas tabernas, um papagaio gritava: já
pagaste, sacana?, quando os clientes saíam.
Poucos conseguiram escapar àquele crisol de infortúnio. Que foi feito do
Descasca Milho? E do Asdrúbal, cujo nome tínhamos dificuldade em soletrar? E do
enfermeiro Baltazar que tratava das doenças venéreas que contraímos nos bordéis
de Alcântara, do Bairro Alto e do Benformoso? Já foram, adiantando-se? O tempo
revoluteia, e nada, ou quase nada é o que foi. A não ser a fome, o desespero, a
desventura de viver que regressaram, num tumulto inclemente e perseverante.
Reconheço que sou um senhor caturra, um pouco chato e invadido por múltiplas
incertezas. Mas não deixo, não posso deixar de repetir as recomendações do Velho
Bastos: não permitam que vos roubem os sonhos.
Podem roubar-vos tudo. Os sonhos
é que não.
Batista Bastos, aqui