Rui Machete não disse inverdades, não cometeu incorrecções factuais, não teve
afirmações menos felizes. Rui Machete mentiu.
Pôs aquela cara de enfatuado e
aquele ar de quem pensa estar acima da ignorante plebe, e mentiu com quantos
dentes tem na boca. Aldrabou os angolanos, aldrabou os portugueses, aldrabou
toda a gente quando disse conhecer pormenores de assuntos em segredo de justiça.
Mentiu descaradamente e sem hesitações quando afirmou ter pedido informações ao
Ministério Público.
Mentiu chamando mentirosa à procuradora-geral. Também
podíamos pôr a hipótese de ser Joana Marques Vidal quem mentiu. Mas,
convenhamos, entre a procuradora e um senhor que se esqueceu de referir que
tinha sido accionista de uma organização a que pertencia, e até aos órgãos
sociais, e que lhe pagava em notas ou em seguros de vida, talvez me incline a
pensar que o mentiroso nesta história é o Dr. Machete. Ou então Machete disse a
verdade.
Com o interesse nacional em vista, resolveu insinuar que violava o princípio
da separação de poderes. No fundo, para sossegar um país estrangeiro ou parte da
sua elite política e económica, que segundo o ministro é do interesse nacional
acalmar, decidiu dar a entender que mandava às malvas um dos mais sagrados
pilares do Estado de Direito - um dos decisivos para separar uma autocracia de
uma democracia.
O Dr. Machete pensou e perguntou-se: "Devo sugerir que no meu
país não temos de facto um Estado de Direito, devo dar a entender que um membro
do poder executivo talvez possa interferir num processo judicial ?" "Posso andar
a dizer que peço informações sobre processos em segredo de justiça e depois
revelá-los publicamente?" Claro que sim, deve ter sido a resposta da consciência
do Dr. Machete, cheio de fervor nacionalista. Tendo possivelmente em mente as
palavras do primeiro-ministro acerca da Constituição, deve ter pensado: "Quantos
empregos, afinal, deu o princípio da separação de poderes aos portugueses?" "Em
que é que a não violação do crime de segredo de justiça contribui para o
decréscimo do défice?"
Convém salientar, o Dr. Machete disse, no fundo, ser
cúmplice num eventual crime de violação do segredo de justiça, que colaboraria
activamente numa possível interferência do poder executivo no judicial, e,
indirectamente, acusou o Ministério Público de colaborar nessas malfeitorias.
Não foi em vão, aliás, que a procuradora foi tão célere a desdizer o
ex-colaborador simultâneo de vários bancos e de outras empresas. Um verdadeiro
homem dos setenta instrumentos.
A dúvida, em resumo, é: pode um Governo ter um ministro que mente sobre o
limite dos seus poderes, que mente sobre a acção do Ministério Público, que
mente aos portugueses e aos nossos mais relevantes parceiros diplomáticos? Ou
pode um Governo ter um ministro que diz interferir no poder judicial e que
afirma praticar crimes de violação do segredo de justiça?
Já sabemos que mentir despudoradamente não faz ninguém sair deste governo.
Por exemplo, o co-primeiro-ministro Portas veio dizer no dia 3 de Outubro que já
não havia mais medidas de austeridade. No domingo, através da TSF, ficámos a
saber que se decidiu tirar dinheiro até aos viúvos e aos órfãos. Portas, que já
não tem mais vergonha na cara para perder, disse que naquele dia ainda não sabia
bem como seria o desenho da medida... - o outro co-primeiro-ministro, Passos
Coelho, veio logo avisar para o choque de expectativas e soube-se, uns dias
depois, que os funcionários públicos vão ter mais um corte de dez por cento nos
ordenados; esta guerra entre os dois cônsules teria até piada se não fosse
trágica.
Exemplos das mais delirantes mentiras não faltariam. Sugerir a Passos Coelho
que talvez não fosse boa ideia manter um ministro que despreza pilares
fundamentais da democracia também não teria qualquer efeito. Passos Coelho é o
cavalheiro que disse que a Constituição não dá empregos, que não se importa de
ouvir entidades estrangeiras a atacar as nossas instituições, que diz sem mexer
o sobrolho que iremos perder soberania, que está tão confuso sobre os seus
poderes e o seu papel que confunde o país com ele próprio quando diz que o
fracasso dele será o de Portugal. Assim uma espécie Passos XIV, L"Etat cest moi.
Pensando bem, a falta de vergonha, o desplante que Machete exibiu na
Assembleia da República, a ausência de competência, o desprezo por valores
fundamentais, não surpreende ninguém. É só mais um exemplo do irregular
funcionamento das instituições. O Presidente da República está bem, obrigado.
(Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo
Ortográfico)
Pedro Marques Lopes, aqui