As palavras são do Miguel Portas, escritas em 2009: "A sorte para os danados
só pode ser uma sorte danada. Muitos morrem, pois morrem. Mas não conseguiram
muitos mais chegar à outra margem? Não suplantaram eles o medo da travessia
nocturna, as correntes imprevistas, as lanchas policiais e os controlos de
terra? Com ele não será diferente."
Para os mais de 300 somalis e eritreus que morreram sexta-feira à vista de
Lampedusa a sorte danada não veio. Foi diferente. Ou melhor, foi igual a tantas
outras faltas da sorte danada. Morreram porque quiseram sinalizar pelo fogo que
havia um ponto de vida a esvair-se naquele mar danado.
Os que, dos seus barcos,
viram as labaredas, lembraram-se da xenófoba lei Bossi-Fini e ignoraram-nos para
não serem punidos por darem ajuda a imigrantes sem papéis. Morreram mais do que
é normal, número danado. E só por isso - e porque um Papa desassombrado disse a
palavra "vergonha" para denunciar "a indiferença para com os que fogem da
escravatura, da fome, para encontrar a liberdade e encontram a morte" - é que a
falta de sorte veio para as parangonas.
Mas logo regressou a normalidade: com os
cadáveres ainda por enterrar, a justiça italiana acusou os 114 sobreviventes do
crime de imigração ilegal que os fará pagar multas de 5 mil euros antes de serem
expulsos de volta ao inferno e os Estados europeus não responderam à solicitação
da Comissão de dotações económicas que permitam montar um mecanismo de resgate
de imigrantes náufragos no Mediterrâneo. Azar danado...
Tem razão Francisco, o Papa: esta é uma Europa de vergonha. Em nome de um
suposto salvamento humanitário, junta-se de peito feito aos semeadores da guerra
do outro lado do mar. Como na Líbia, de onde fugiram, desde o início dos
combates que a intervenção da NATO só agravou, mais de 600 mil pessoas.
Espalharam-se por toda a região, desde o Egito ao Chade, passando pelo Mali ou a
Argélia.
Todos países pobres que, no entanto, tiveram a dignidade de manter as
suas fronteiras abertas para acolherem os refugiados fugidos à guerra. Ou como
no Iraque, de onde fugiram 5 milhões de homens e mulheres, refugiando-se em
países vizinhos onde, sempre em nome do salvamento humanitário, a Europa se
disponibiliza para fazer guerras (como na Síria) que alimentam novas fugas em
massa para novos purgatórios. Vidas danadas.
A Europa, essa, fecha-se, paga aos
governos da orla Sul deste mar danado para travarem os que querem vir à busca de
vida melhor do lado de cá, ao mesmo tempo que adota leis criminalizadoras de
quem não trouxe no bolso as certidões e os vistos na hora de fugir aos tiros, à
fome ou à pobreza sem fim.
Sabemos assim o que vale a liberdade de circulação na Europa. Vale para os
capitais e para quem os detém. Já para os pobres que, do outro lado do mar, dão
as poupanças de uma vida a agenciadores corruptos para comprar esse sonho ela
não é senão isso: sonho proibido. Que logo vira pesadelo danado.
25 mil mortos na viagem de uma vida, nos últimos 20 anos, são o rosto desse
pesadelo. Mortos de frio, de asfixia, de afogamento, de assassinato. Tudo por
causa de uma terra prometida que vira terra danada para os sobreviventes que a
alcançam e são depois roubados, violados ou mantidos no cárcere da prostituição
forçada.
Uma Europa que olha para Lampedusa e responde com polícia é estúpida e
cobarde. Porque sabe que não há cortejo de naufrágios que demova um jovem
condenado a viver na rua ou a trabalhar em regime de escravatura para ter um
prato de comida por dia de tentar a sorte. Mais falta dela não terá, essa é a
sua única certeza. Danada.
José Manuel Pureza, aqui