O discurso de Cavaco Silva ao País foi um discurso de revisão constitucional.
Cavaco Silva reviu a Constituição sem dizer nada a ninguém. Onde se estipula que
o Presidente da República jura cumprir e fazer cumprir a Constituição, Cavaco
estatuiu que o Presidente da República jura cumprir e fazer cumprir o Memorando
de Entendimento com a troika.
Onde a Constituição estabelece que a soberania reside no povo, Cavaco Silva colocou perentoriamente que a soberania reside nos credores e nos mercados. Onde a Constituição adota um regime democrático representativo baseado em eleições livres e justas, Cavaco Silva contrapôs um regime de democracia tutelada, em que os partidos se comprometem a adotar a política de austeridade como seu guião supremo e a anular, na prática, quaisquer diferenças sensíveis a esse respeito.
Onde a Constituição estabelece que a soberania reside no povo, Cavaco Silva colocou perentoriamente que a soberania reside nos credores e nos mercados. Onde a Constituição adota um regime democrático representativo baseado em eleições livres e justas, Cavaco Silva contrapôs um regime de democracia tutelada, em que os partidos se comprometem a adotar a política de austeridade como seu guião supremo e a anular, na prática, quaisquer diferenças sensíveis a esse respeito.
Agora o País ficou a saber a razão de tanta preocupação de Cavaco Silva com o
"pós-troika". O pós-troika, em versão cavaquista, é a troika
eternizada por revisão constitucional implícita. E, em nome do
pós-troika assim entendido, Cavaco Silva transformou a suspensão da
democracia, insinuada há tempos como uma ironia, numa realidade política
concreta. Portugal é hoje um país com uma democracia suspensa.
O primeiro passo da suspensão da democracia é a manutenção em funções do
atual Governo, com ministros que se demitiram e depois afinal já não, com outros
que já se tinham despedido dos respetivos gabinetes, com putativos entrantes já
à porta dos ministérios, etc. Este Governo passa a ser um híbrido entre um
Governo pleno sem uma réstia de crédito político e um Governo de gestão em
regime de serviços mínimos com prazo à vista e substituto identificado. É
evidentemente a pior das soluções em termos da tão propalada defesa do interesse
nacional, sobretudo quando está aí o pacote gigantesco de austeridade de 4700
milhões de euros como contrapartida das próximas tranches do
financiamento da troika. Um Governo assim não ajoelha, é feito para
ajoelhar.
O segundo passo da suspensão da democracia será a transformação das eleições
pré-marcadas para junho de 2014 numa votação mas não numa escolha. Haverá urnas,
papelinhos e cruzinhas, haverá até comícios e discursos inflamados de
circunstância. Mas o resultado será sempre o "compromisso de salvação nacional":
o partido que ganhar e os partidos que perderem defenderão a mesmíssima
filosofia orçamental, a mesmíssima orientação para os serviços públicos, a
mesmíssima visão de país pequenino e vendido a retalho. O conceito de "salvação
nacional" para Cavaco é claro: cumprir o memorando custe o que custar e
eternizar a sua lógica e as suas orientações até ao infinito e mais além.
Há algo de redundante nisto, pois que os três partidos convocados pelo
Presidente a esse compromisso já se comprometeram há muito quando firmaram o
Pacto Orçamental ditado por Berlim. Mas a operação de Cavaco é justamente essa:
confirmar a maioria do Pacto Orçamental e do Memorando, amarrando nela o Partido
Socialista.
E assim fará o que a Direita governamental e parlamentar não
conseguiu: integrar o PS numa maioria social e política que imponha a
austeridade toda. Esta é por isso a hora do PS. Ao repto de Cavaco, o PS não
pode continuar a responder "nim", falando contra a austeridade ao mesmo tempo
que assevera aos mercados que está pronto a governar cumprindo escrupulosamente
todos os compromissos internacionais de Portugal (leia-se os que nos condenam à
austeridade sem fim). Agora tem de escolher um lado ou o outro.
Cavaco subiu
radicalmente o patamar de pressão sobre o PS. Da decisão do Largo do Rato
depende boa parte da possibilidade de uma alternativa à suspensão da democracia.
José Manuel Pureza, aqui