Passaram três dias sobre a apresentação do estudo da Cáritas sobre as
políticas de combate à pobreza em Portugal.
Com a suprema autoridade de quem
fala a partir de um conhecimento adquirido num quotidiano de presença na
realidade da vida dos pobres - os declarados e os muitíssimos outros -, a
Cáritas veio mostrar o País que somos: um país em que o risco de pobreza atinge
23,5% da população.
Menos de uma semana volvida sobre esta advertência - mais uma - da Cáritas, o
Governo responde com a aprovação do guião para a reforma do Estado. Em bom
rigor, o Governo não aprovará nada. Porque o seu guião está há muito aprovado
pela troika e consiste em algo muito simples: operar um corte de 4700 milhões de
euros na despesa pública em 2013 e 2014. E não é só o final do filme que está
escrito, é todo o enredo: 777 milhões cortados até ao fim do ano em relações de
trabalho no Estado, mais 334 milhões nos chamados consumos intermédios e 300
milhões em "outros". O guião é de quem guia - a troika - e quem guia virá em
julho assegurar-se de que o guião foi assumido pelos seus representantes em
Portugal.
Se o Governo da troika responde com despedimentos e com cortes na saúde, na
educação e na segurança social ao estudo da Cáritas, Cavaco respondeu-lhe com um
guião de ataque à supremacia do Estado social sobre o assistencialismo social.
Na própria sessão de apresentação do estudo da Cáritas, Cavaco comunicou ao País
os três traços do seu guião.
Primeiro: a construção do Estado social em Portugal
terá, segundo ele, adotado uma lógica "centralizadora de intervenção direta da
administração do Estado, muitas vezes marginalizando a ação das organizações de
base territorial" - tradução: para que é que o Estado se foi meter onde já
estavam as Misericórdias e organizações afins?
Segundo traço do guião
cavaquista: "Criou-se uma cultura de protecionismo social protagonizado pelo
Estado, desresponsabilizando de algum modo os cidadãos e menosprezando os
valores da cultura cívica, da participação, do voluntariado e do espírito de
solidariedade" - tradução: para Cavaco, o reconhecimento pelo Estado de direitos
e a sua ação em conformidade gera subsidiodependência e falta de
empreendedorismo.
Terceiro traço do guião: a prestação de apoio por outras
entidades que não o Estado contrapõe "uma dimensão mais humanizada à alternativa
burocrática que o Estado oferece" - tradução: segundo Cavaco, um Estado social
baseado em direitos e em prestações sociais que lhes dão densidade concreta é um
monstro de funcionários e de anonimato desumanizador.
Os guiões da troika e de Cavaco Silva completam-se. Um e outro escrevem uma
história em que o Estado é o mau da fita. Um quer diminuir o Estado para abrir
novas áreas de negócio para os privados. O outro quer um Estado diminuído para
reabrir espaço para as assistências sociocaritativas locais.
Um e outro dão a
pior das respostas ao repto que é o retrato de Portugal plasmado no estudo da
Cáritas: é porque há um Estado que reconhece direitos e que assegura prestações
sociais que o risco de pobreza não é explosivamente maior em Portugal. Contra
todas as modas do momento, uma reforma eficaz do Estado só pode reforçar a sua
responsabilidade social, nunca diminui-la.
PS: A morte de Osvaldo de Castro é uma notícia triste para a
democracia e para a esquerda
José Manuel Pureza, aqui