No tempo em que os meninos trabalhavam de criados, havia uma patroa muito má que tomara a seu serviço um rapazinho, o Manuel, a quem dava ordens por tudo e por nada, qual delas a mais disparatada.
No quintal, a senhora dona tinha uma figueira que, nesse ano, dera um único figo. Pois não é que a maluca da mulher exigiu ao Manuel que estivesse todo o tempo de atalaia, não se desse o caso de os pássaros cobiçarem o figuinho?
- Quero comê-lo, quando estiver maduro. Ai de ti, se deixares os melros roubarem-no.
Bem os afugentava o garoto, mas os passarocos de bico cor de laranja são teimosos. E gulosos... Às duas por três, adeus figuinho.
- Maldito miúdo. Vais pagar-mas - gritou a megera.
E meteu-o de castigo numa pipa vazia, às escuras. Sorte para o Manuel que os melros tivessem sabido. Logo convocaram os pica-paus e outros passarinhos de bico duro. Todos juntos, toc toc toc, libertaram o Manelinho.
Depois, uma águia, que também tinha sido chamada para ajudar, levantou o rapazinho nos ares.
A patroa viu-os e foi buscar uma caçadeira, mas já não chegou a tempo. Era mesmo má a criatura.
A águia sobrevoou montes, campos, pinhais, aldeias, como se andasse à procura não se sabe de quê, até que poisou o Manuel num quintal, onde havia uma figueira. Depois, bateu as asas e desapareceu.
O rapaz, ainda meio tonto, viu a figueira e nela um único figo lampo. ?Que desgraça a minha. Vai voltar tudo ao princípio", pensou o Manuel.
De dentro da casa, donde era o quintal, apareceu uma velhota. O miúdo encolheu-se e pensou: "Estou mesmo com azar. Esta há-de ser ainda mais torta do que a outra".
- Como te chamas? - perguntou a velha.
- Manuel, para a servir.
- Para me servires? - riu-se a velha, num riso desdentado. - Eu nunca tive criados, mas querendo, podes ficar a cuidar-me da horta. Queres?
- Sim, minha senhora.
- Estamos acertados. E, olha, enquanto te preparo umas sopas, lambe-te com aquele figuinho único que a figueira me deu.
- A senhora não o quer para si?
A velhota fez uma careta.
- Não me dou bem com figos e tu puseste-te a olhar para ele como nunca vi ninguém olhar para um figo. Deve ser da fome que trazes.
O Manuel chamou a si o figo e pronto. Enquanto saboreava o figo e a velhinha, enternecida, sorria para ele, o Manuel pensou: "Valera a pena conhecer as alturas, porque a águia sabia onde me deixava."
Também estamos em crer que sim. As águias, lá de cima, vêem muito, olá se vêem.
António Torrado e Cristina Malaquias, aqui