quarta-feira, 20 de março de 2013

CONTADORES.

Ela sabia demais o que lhe sabia a pouco.

Havia alturas das quais lhe apetecia cair. Nem que fosse num enorme trambolhão. Mas cair de certas alturas podia ser a única solução para deixar de saber de mais sobre aquilo que lhe sabia a pouco.


Ela tinha dias bons. Também tinha dias maus e outros que nem sequer se lembrava de ter vivido e que por isso não deviam ter sido nem bons nem maus. Tinha dias assim. Assim assim.

Tinha muitas gavetas. Entreabertas ou estragadas. Umas que custavam a abrir e outras que nem sequer conseguia fechar. Parecia um móvel daqueles antigos a que chamam contadores. E ela sentia-se assim. Capaz disso. Ou então não. Nem sempre, só às vezes.

De vez em quando sentava-se algures dentro dela e rebuscava nas memórias. Era capaz de sorrir e de vez em quando até já era capaz de se rir de coisas que a tinham feito chorar muito. Outras vezes não.

De vez em quando, quase sem querer, ficava parada a olhar para qualquer coisa que não tinha dito ou para uma coisa qualquer que tinha deixado fora do sítio.


Ela sabia demais o que lhe sabia a pouco.

Queria ser capaz de deixar de se lembrar de muitas coisas e de nunca mais se esquecer de outras tantas. Queria ser capaz de lhe dizer que nunca esperou muito que ele lhe desse alguma coisa. Queria que ele soubesse que o mais importante tinha sido estar ali tanto tempo à espera que ele quissesse mais.

“Contadores”. Podia tentar mexer na palavra. Conta. Dores. Contar as dores. Contar o tempo que passa. A energia que se gasta.

Seria sempre assim. As gavetas seriam sempre pequenas demais para guardar o que se quer e demasiado grandes para descobrir dentro delas o que queremos que deixe de contar.

As coisas todas precisam de muito espaço.  Há coisas que não cabem em lado nenhum.  

Há coisas assim que crescem cá dentro à medida que vamos ficando mais pequenos diante delas.

Ela sabia que há alturas em que o céu fica demasiado grande e se veste de cores difíceis de explicar.

Apetecia-lhe cair dessas alturas. Deixar-se cair nessas alturas talvez fosse o pretexto que precisava para se levantar.

Cristina Gameiro, aqui