Às vezes tinha vontade de se sentar no banco da cozinha e de ficar a olhar pela janela.
Gostava de amanheceres. Como se também ela sonhasse com o dia em que ia fazê-lo. O despertador tocava sempre à mesma hora. Ela levantava-se e ia para a cozinha.
Como o dia.Depois fazia um café, uma torrada e pensava nas hortenses. Gostava de hortenses. Como se o mundo devesse ser aquilo. Assim. Muitas flores numa só. Redondo assim.
Tomava um banho rápido, lavava os dentes e ainda tinha tempo para tapar as rugas com um creme qualquer que servia para isso. Como se devessemos ter vergonha delas, como se fosse imperativo esconder do olhar dos outros aquilo que somos. Aquilo que vivemos. O que sentimos e o que nos fizeram sentir.
Fazia-o porque sim. Não gostava de o fazer.Achava-se mais bonita antes desse ritual. Quando olhava para o que tinha vivido.Mas isso era ela. E ela não tinha sempre razão. Às vezes era o mundo lá fora que tinha razão. Ou tinha que ser assim. Pensava o mundo.Já tinham vivido mais pessoas naquela casa.
Antes dela e com ela. Agora só havia uma chávena para lavar e ela ainda tinha tempo de o fazer antes de sair para o trabalho e depois de se ter vestido sem pressas.Tinha o mesmo trabalho de sempre. O mobilário do escritório já tinha mudado três vezes com ela ali.E a cor das paredes também.
E ela? Continuava a trabalhar em frente à mesma janela e a ter o mesmo ponto de vista.Sempre o mesmo sobre as coisas que se viam daquela janela. Só as coisas que se viam é que tinham mudado. Algumas vezes.
E ela? Estava capaz de querer nascer outra vez. Sem ter que morrer para isso. Queria acreditar que podia ser como os gatos que vivem sete vidas sem precisarem de pôr fim a nenhuma.Ela não gostava de reticências.
Gostava de pontos finais. Já tinha posto alguns na história dela.E na história dela com os outros. Mas nunca tinha pensado em se pontuar assim.Não. Ainda não.Ela não era melancólica. Os fantasmas com que convivia já estavam domesticados.Não a assombravam.
Ela tinha vivido metade da vida. Ou menos que isso. Ou então quase a vida toda. Não queria saber. Gostava de hortenses. Gostava de ver o dia nascer. Ainda estava à espera de nascer sem antes ter que sair dali.Se calhar mais nínguem ia tocar no corpo dela mas isso já não era importante.
O corpo dela tinha-se transformado em qualquer coisa de demasiado íntima para que ela estivesse disposta a partilhá-lo.Ia continuar a sentar-se no banco. À janela na hora do costume.
E amanhã não ia cumprir mais nenhum ritual.
Talvez fosse o que lhe faltava para viver.
Cristina Gameiro, aqui