Conheço-o há muitos anos – quando nos cruzamos falamos como se fossemos amigos, como se nos conhecêssemos intimamente.
Nestas coisas não há uma regra de três simples: há gente com quem gastamos dias infindos e se mantêm fora do nosso círculo; e os que existem na nossa vida sem necessidade de conversas ou proximidade. Aquilino Machado está nesse segundo conjunto, um pote sem dúvida mais raro e valioso.
Talvez haja poucas famílias assim. O homem a quem trato por amigo é também neto de Aquilino Ribeiro e bisneto de Bernardino Machado, Presidente da República por duas vezes, após a queda da Monarquia em 1910. Um peso que carrega com orgulho – recordo-me de o ouvir dizer que iam passar as férias à famosa casa de Romarigães, mais do que uma casa imaginava-a como personagem de romance do velho Aquilino Ribeiro. Fazia-me confusão, perguntei algumas vezes se não seria um lugar demasiado sombrio para gastarem o descanso e reciclarem energias.
Em Paredes de Coura não há quem não a conheça, a casa habitada por Bernardino Machado e Aquilino Ribeiro que desposaria Jerónima, filha do grande republicano. Tanto ouvi falar dos portões de ferro à entrada, das sebes altas, do musgo e da capela no quintal. Ouvi descrições umas quantas vezes e outras tantas vezes pensei em sombras e fantasmas. Não se proporcionou perguntar a Aquilino Ribeiro Machado sobre o peso de Romarigães, nem acerca do tesouro de que a família é guardiã, um Graal que tem passado de geração em geração. Morreu antes que o pudesse fazer. Também por isso enviei uma mensagem no dia da morte do seu pai. Porque o meu amigo Aquilino é agora o portador dos segredos da família.
O jovem revolucionário Aquilino Ribeiro frequentava o Café Gelo, no Rossio. Sentava-se na mesma mesa com Manuel Buíça e Alfredo Costa, carbonários que, a 1 de Fevereiro de 1908, alvejaram D. Carlos I e o príncipe regente Luís Filipe sabendo que, a partir daquele momento, também deixariam de ter futuro.
Aquilino sabia do golpe. Preparou-o com os seus amigos, com eles foi ao notário onde Buíça escreveu o testamento. Foi a 28 de Janeiro que o redigiu, foi aí que lavrou a sentença do Rei e, obviamente, a sua própria. Aquilino Ribeiro Machado entregou o testamento, na posse desde então do seu pai, à Fundação Mário Soares. Lá podemos ler: «… Foram testemunhas do acto Albano José Correia, casado e empregado no comércio e Aquilino Ribeiro, solteiro, publicista. Ambos os meus filhos vivem comigo e com a avó materna nas escadinhas da Mouraria, 4, 4.º andar, esquerdo. A minha família vive em Vinhais para onde se deve participar a minha morte… Peço que os eduquem [aos filhos] nos princípios da liberdade, igualdade, fraternidade que eu comungo e por causa dos quais ficarão, porventura, em breve, órfãos…».
Aquilino ainda não era casado com a filha de Bernardino. Ainda não escrevera a Grande Casa de Romarigães ou o Malhadinhas, mas já era precioso para a Carbonária e talvez para a Maçonaria. Diz-se que a ele pertencia uma arma que acabou por não ser utilizada, porém o seu fulgurante talento literário deveria ser empregue noutras batalhas. Acabou por ficar na retaguarda onde viu Buíça e o grande amigo Alfredo Costa, com quem fundara a Social Editora, a matar o Rei e a colocar em cheque a monarquia e a crescente influência de João Franco. Viu a Polícia ferir os regicidas e depois a matá-los. Cumprira-se o objectivo.
Para muitos partiram como mártires, para outros foram assassinos.
Aquilino Ribeiro exilou-se em França e regressou após o 5 de Outubro de 1910.
Buíça e Costa foram sepultados no Alto de São João. Com a instauração da República transitaram para um mausoléu e com Salazar regressaram a um lugar raso e sem identificação – reprimir ideias subversivas passou a ser a prática.
Aquilino Ribeiro foi a décima pessoa a ser sepultada no Panteão Nacional – o seu corpo foi transladado no dia 19 de Setembro de 2007 e algumas dezenas protestaram, acusando o escritor de ser um terrorista e de nisso ter orgulho. Na cerimónia estiveram o filho, Aquilino Ribeiro Machado, o neto Aquilino Machado e creio que a bisneta, Mariana.
Naquele dia, o primeiro presidente da Câmara de Lisboa, eleito após o 25 de Abril, deve ter sentido um orgulho de ser quem é. Nascido em França em 1930, ano da publicação de O Homem que Matou o Diabo, acompanhou sempre o pai e o seu frontal combate ao salazarismo. Num qualquer dia antes do fim, o escritor passou-lhe os segredos da família.
Terá certamente feito o mesmo que ele.
E se o fez continuam em boas mãos. Nas mãos seguras de uma espécie de amigo. É ele o dono do segredo.
Luís Osório, aqui