sábado, 29 de setembro de 2012

CANSAÇO DE ONDA


Já não me recordo da última vez que descansei. 

Já foi noutro tempo qualquer que o mar levou para longe e que de vez em quando espero que traga. 
De vez em quando espero. Só de vez em quando porque nem sempre tenho tempo. E porque noutras alturas não me apetece esperar. Ou simplesmente, porque me iria fazer recordar o tempo em que não vivi porque não te conhecia. 
Não descanso desde que chegaste. Porque não deixavas. E desde que te foste embora não descanso porque te foste. E antes de te conhecer não tinha descanso. Porque não sabia quando chegarias.

Vejo-te por todo o lado. Pintada nas paredes. Reflectida no espelho da casa de banho. Escondida atrás da porta do guarda fatos. Debruçada na máquina de lavar roupa, sacudindo as peças antes de as estenderes. Revejo-te.
Em bicos de pés a tirar os pratos do armário para pores na mesa.
A mudar o rolo de papel higiénico.
A aspirares a casa e a cantares.
Acho que nunca te disse que não sabias cantar, pois não?

Lembro-me de ti. Mesmo que não queira. E às vezes tenho a certeza que não quero.

Como a casa me fazia lembrar de ti, mudei-me. Mas percebi depressa que todas as casas de banho têm espelhos. E que o armário da cozinha me obriga a esticar para ir buscar os pratos. Claro que não me dei por vencido. 
Mudei os pratos para o armário de baixo e sorri como quem pensa (e pensava!) que assim ganharia pontos. Mas sempre que precisava da fritadeira, lá tinha eu que me pôr em bicos de pés e esticar o braço para a tirar do armário de cima. E lá estavas tu. Outra vez.
E tinhas razão, o papel higiénico acabava sempre comigo e eu é que nunca mudava o rolo. Pelo menos agora acaba sempre comigo. Por não estares aqui.

Quando te tinha acho que nunca percebi que me tinhas.
Estava cansado. De ter estado à tua espera.
 Estava cansado de te ouvir implicar comigo. De te ouvir cantar. Sorrir. De ver que podias viver sem mim. Porque eras linda e toda a gente te amaria. Se não fosse eu, outro qualquer seria capaz de o fazer. Não tanto. Não tão bem. Mas amaria. E talvez isso te chegasse, porque às vezes queixavas-te que eu te amava demais e que não te deixava espaço e tempo para me amares. Dizias isso a cantar pela casa. Para que eu não te levasse muito a sério. Ou então, para que a melodia me entrasse na cabeça.
Eras esperta. Cantavas mal, mas eras esperta.

Tinhas um sorriso bonito. Achei-te graça desde o primeiro dia. Graça. Tinhas. Era isso. Tanta. Graça. Não era piada. Piada é que coisa que têm algumas mulheres. Muitas. E homens. Tu não. Tu tinhas graça. Isso poucas pessoas têm.


Eu sei que nunca tive jeito para gostar de ti. Já te disse que isso tem a ver com o cansaço.
Toda a minha vida fui onda. Ia. Vinha. Rebentava.
Espalhava-me pelas praias. Pelas areias. Tantas movediças. Salpiquei. Molhei. As vezes que encharquei os que me rodeavam, ou os que por azar estavam naquela praia.
Tantas vezes me fui, me vim e rebentei que andava cansado.
Cansaço de onda.
Por isso quando chegaste pensei que eras mais um punhado de areia. Depois percebi que eras praia.
Mais tarde que eras a minha praia.
Tarde demais que eras mar e que eu era a tua onda.

Conheci todas as tuas manhãs. Todas as tuas manhas e adormeceres. As tuas crises. O teu sal e o teu sorriso. As tuas estações.
Feita de segredos. De cumplicidades húmidas. De suores exaustos.
Gostava tanto de ir para a cama contigo. Não eras muito boa. Nem eu. Mas gostava tanto de ir para a cama contigo. Faziamos tanto amor que acabavas por ficar cansada e eu sentia-te assim mais próxima de mim.

Não descanso desde que chegaste. Porque não deixavas. E desde que te foste embora não descanso porque te foste. E antes de te conhecer não tinha descanso porque não sabia quando chegarias.

Já não me recordo da última vez que descansei. Já foi noutro tempo qualquer que o mar levou para longe e que de vez em quando espero que traga. Que te traga.

Amar assim cansa.

Cristina Gameiro, aqui