Tirar aos pobres para dar aos ricos nunca foi um programa tão evidente.
Passos Coelho ultrapassou na sexta-feira uma linha vermelha qualquer – que pode vir a revelar-se um ponto de não-retorno. Se o primeiro-ministro não teve consciência disso a anteriori, o penoso post escrito no Facebook um dia depois é o perfeito atestado que, a posteriori, percebeu.
Por razões de ordem variada, Passos Coelho tem conseguido impor a sua agenda de redução acelerada de salários (por via dos elevados níveis de desemprego e do aumento de impostos) sem grande transtorno. Os portugueses não saem à rua – ou fazem-no ordeiramente nas manifestações convocadas pelos sindicatos – e a oposição tem vivido dias particulares, com o PS amarrado ao facto de ser co-autor do Memorando da troika, o Bloco de Esquerda em crise de sucessão e o PCP envelhecido sem conseguir explicar onde é que cabe a sua alternativa.
Passos Coelho assentou uma política (exigida por instituições externas, mas por ele abraçada desde o primeiro minuto com o acrescento de “ir além da troika”) numa moral. Falsa, mas moral. Ele iria redimir o país do “regabofe” dos gastos do engenheiro Sócrates e a política de austeridade iria começar por cima. Claro que a famosa declaração de que não haveria gestores públicos a ganhar mais do que o primeiro- -ministro foi por água abaixo e o governo contratou funcionários a quem fez o favor de proteger dos cortes nos subsídios de férias e de Natal que quis impor aos funcionários públicos.
Se os ricos continuaram ricos, a classe média afundou-se, os pequenos empresários entraram em falência, o desemprego disparou. A confiança religiosa na receita criminosa da troika – somada à inexistência, até à data, de alternativas a nível europeu – foi recebida pelos portugueses com a “paciência” elogiada por Passos Coelho. O primeiro-ministro terá sonhado que a “paciência” não era uma variável – era uma espécie de património histórico, como o Mosteiro de Alcobaça, imutável como os túmulos reais.
O assalto aos ordenados por via da Segurança Social foi mais grave do que um aumento de impostos – pelo menos os impostos sobre o rendimento variam em função do dito. Anunciar a medida gabando-se de não aumentar os impostos é de uma irracionalidade atroz. Se a medida é inútil para os pequenos empresários em crise, transforma-se num bónus extra para os grandes empresários. Tirar aos pobres para dar aos ricos nunca foi um programa tão evidente. Parece que a paciência, efectivamente, acabou.
Ana Sá Lopes, aqui