Pouco mais de quarenta metros quadrados e um papel de parede estranho que lembrava histórias de outras pessoas que lá tinham vivido antes.
Ele tinha trabalhado alguns anos para um jornal que tinha acabado por fechar por falta de lucros. Agora era vendedor numa livraria de um centro comercial.
Tinha quarenta e seis anos e ainda não era velho apesar de já caberem nele muitas memórias.
O pai tinha morrido de um ataque de coração e a mãe tinha-se aguentando ainda dois invernos sem ele mas tinha acabado por se render à saudade sem sequer perder tempo a deixar-se adoecer.
Ele tinha tido muitos amigos quando era mais novo, todos escolhidos por ele e que mais nínguem conseguia ver ou ouvir. Tinham estabelecido relações duradouras durante anos e de vez em quando ainda se lembrava das conversas que costumavam ter. Entretanto foi chamado para ir combater para uma guerra qualquer, que já não se lembrava o nome mas, que implicou anos de disputas por um território que devia ser comum.
Durante o tempo que esteve nessa guerra perdeu o contacto com os amigos com quem costumava partilhar os segredos e os medos, as alegrias e os resultados das jornadas. Durante esses anos passou a escrever-lhes em toalhas de restaurante ou a lembrar-se vagamente quando saía fumar cigarros no alpendre em noites de lua vazia.
Esteve na guerra o tempo que foi preciso até que as tropas, entretanto inimigas, decidiram retirar-se.
Voltou da guerra com as mazelas que se trazem quando se regressa de qualquer guerra. Com os mesmos pesadelos e com uma data de amigos que toda a gente, além dele, podia ver e ouvir, mas que não eram os dele.
Tinha decido escrever um livro qualquer. Sobre uma coisa qualquer. Uma história qualquer que não a sua, mas com os mesmos personagens.
Ocupava assim os fins de tarde quando voltava da livraria. Depois fazia qualquer coisa para jantar e jantava sozinho em frente à televisão a ouvir notícias de outras guerras de outras gentes. De vez em quando tinha alguem com quem jantar. Uma mulher, às vezes mais nova outras vezes mais velha, mas nenhuma sabia sonhar e todas queriam alistar-se para partirem para uma guerra qualquer. De vez em quando ia passear pelo centro centro comercial onde trabalhava.
Entrava numa ou noutra loja e olhava com atenção para as coisas, fazendo um esforço para imaginar a satisfação que poderia sentir se resolvesse comprá-las. Às vezes comprava qualquer coisa para ter a certeza que era capaz de sentir vontade de o fazer. Mesmo que não tivesse vontade. E de vez em quando levava as mulheres com quem jantava para a cama e tentava explicar-lhes de que lado pode estar o inimigo. Mas elas gostavam de guerras e ele queria era saber onde é que estavam guardados os bocados das toalhas de papel onde escrevia vezes sem conta, em letras de imprensa atrapalhada o nome dela.
Mas ela, que tinha sabido ganhar um dia a confiança de todos os amigos, que mais ninguem ouvia, já não estava ali. Nunca mais a ia ver, nem sequer no papel das paredes que guardavam apenas sombras das histórias de outras pessoas que lá tinham vivido. Ela tinha existido antes das guerras, no tempo dos campos de trigo e das correrias desenfreadas mas tinha partido antes dele para uma guerra qualquer onde acabou por morrer.
Cristina Gameiro, aqui