Foi há pouco mais de seis anos que 'Kim' foi
encontrado abandonado entre uma ninhada de gatos assanhados.
A memória já é vaga, mas lembro-me que o bichano
nem sequer abria os olhos, e parecia desesperado com o seu miar débil e
insistente.
Apesar do seu aspecto raquítico, foi escolhido pelo
seu traje original: focinho rosado sob uma mascarilha branca, pêlo prateado com
umas imaculadas luvas e botinhas brancas nas patas.
Acomodado numa
caixa de sapatos, e sem parar de gemer, cedo o bicho chamou a atenção, e logo
no dia da adopção houve quem resmungasse o primeiro voto de desagrado, voto
este que pairaria pesando desde então sob a vida do gato e sobre a cabeça dos
adoptantes.
Logo nos
primeiros dias, o bichano foi injectado com poderosas vitaminas e revigorantes
doses de apresentações públicas, e também com pequenas doses de leite que lhe
foram ministradas pela minúscula boquinha com uma seringa de plástico. E foi
nessa ocasião que foi baptizado de 'Kim', um polémico nome que
tanto chocou alguns militantes de arreigada convicção política, sempre tão
ciosos do seu culto partidário.
'Kim' começou
a crescer em graça, já que de sabedoria nunca foi grande coisa. Fazia grandes e
repentinas corridas pela casa fora, trepava paredes e cortinados, apanhava
moscas com a patinha e rebolava enrolado mordiscando com pequenos coices. O
bichano parecia ter sido definitivamente adoptado por todo o bairro, e passado
pouco tempo a propriedade parecia estar-lhe reconhecida por quase todos.
De sesta em
sesta, saltitava de colo em colo e de noite para noite aninhava-se em
diferentes camas, coisa que deixava alguns despeitados muito ciumentos.
Lembro-me bem de ter assistido a várias homilias dominicais com o 'Kim' ronronando
aninhado nas minhas pernas cruzadas.
Eu esforçava-me por legitimar a minha hegemonia e assumia o árduo trabalho de criar um felino naquele terceiro andar em Oliveira do Bairro: tratava do caixote renovando a serradura e cuidava da sua alimentação, surripiando os mais apetitosos restos de comida e, sempre que se proporcionava, numa ida ao Pingo Doce, adicionava umas latas de Kitty Cat ao carrinho.
Eu esforçava-me por legitimar a minha hegemonia e assumia o árduo trabalho de criar um felino naquele terceiro andar em Oliveira do Bairro: tratava do caixote renovando a serradura e cuidava da sua alimentação, surripiando os mais apetitosos restos de comida e, sempre que se proporcionava, numa ida ao Pingo Doce, adicionava umas latas de Kitty Cat ao carrinho.
Esses dias eram
especiais, pois conquistava o coração do 'Kim', que enquanto eu suava a abrir
a lata, subia pelas minhas pernas em sonoros roncos de prazer. Mas o facto é
que o felino vivia lá em casa numa semi-clandestinidade, e isso era uma sombra
negra na minha vida. Após uma primeira rejeição pela parte de alguns, ´Kim'
conquistou-os por um curto período, quando, gracioso e ainda bebé, fazia
irresistíveis brincadeiras e jogos que só às bestas deixavam indiferentes.
O problema
adensou-se com o tempo: o gato adquiriu o vício de, por tudo e por nada arranhar
tudo e todos, e por isso, quanto mais crescia mais encanto foi perdendo.
O pior foi
quando começou a ser sistematicamente acometido por umas estranhas crises que
chegavam a perdurar infindáveis dias, em que uivava autenticamente como um canino,
arrastando-se languidamente pelo chão.
Não se tratava
de cio; tratava-se, isso sim, de uma feia doença com a qual 'Kim' começou a
lutar, e que o veterinário do município não conseguiu debelar. Foi no final da tarde
da chuvosa da terceira sexta-feira do último mês de Fevereiro, que aquilo que mais se
temia aconteceu.
O gato, numa das suas incontidas correrias, saiu porta fora
para se juntar às dúzias de crianças que enfrentaram a chuva e o frio para
participar no desfile de Carnaval, tendo sido atropelado por um autocarro dos
TOB que nesse exacto momento, apinhado de ar, passava em frente ao edifício da biblioteca
municipal.
O gatinho, por
ordem inabalável dos responsáveis pelo ambiente, foi nesse dia abandonado, com
apenas seis das suas sete vidas no parque de pinheiros mansos ali para o lado da Zona Desportiva, havendo quem jure a pés juntos tê-lo visto refugiar-se,
assustadíssimo, debaixo de uma velha motorizada aí estacionada, começando assim a sua
experiência de gato de rua.
Desde então,
tem sido confundida a pena que se tem do bicho com a pena que se tem de todas as coisas que não correm bem.
Daí para cá,
há quem passe naquele local, com emoções contraditórias, procurando,
incrédulamente, sinais do 'Kim'.
Que desde então nunca mais deu sinal de
vida.
Alma de Deus