sexta-feira, 4 de novembro de 2011

DEVANEIO POÉTICO - PORQUE O FIM DE SEMANA ESTÁ AÍ

DE PROFUNDIS

Do profundo abismo em que me achei,
E em que não me lembro se caí ou fui precipitado,
Da lama fofa e a ferver de que me cozi, clamei
A vós, Senhor, surdo e infinito:
Sejas tu neste grito
Para todo o sempre louvado.

Sejam vossos ouvidos atentos (ah, Senhor,
Assim se diz, assim seja!)
A voz da minha culpa e do meu nada -
Maior, neste clamor
E na miséria que esse olhar deseja,
Que toda a coisa principiada.

O meu corpo é moído e ardente
Como a areia do deserto
De que o teu vento faz as ondas da cegueira
Rotativa e lunar;
Tenho o meu lado aberto
Por uma lança rasteira,
E não por te imitar.

Aqui, das toalhas da aflição
Pela canalha rasgadas
E em minhas chagas embebidas,
Levanto o meu queixume,
Pura evaporação,
Secada pelo teu lume,
Em sangue e mijo molhadas,

Senhor, que me sujei na força da agonia
E em minhas lágrimas me lavo,
Como um velhinho fazia
No catre do hospital, fedendo a murta e alho bravo -
Uma argália nas partes, algodão num ouvido:
Só por cima da colcha uma mosca o afagava
Enquanto ele chorava,
Todo borrado e comovido.

Sim, daqui, deste abismo trivial
A que só as palavras dão fundura,
A ti clamo.
Abre o meu pedernal,
Que a seca estéril rege;
Monda o vil coração com que te amo
E, ainda que eu fraqueje,
Cava-me até ao fio de água pura.

Abre os seios dos meus ossos
E a cerração tenaz dos meus tendões:
Assim se abrem os poços
Que dão de beber aos leões.

Aí, Senhor, a tua estrela,
Quanto mais podre eu for à tona,
Mais brilhará, profunda e bela
Como o luar e a beladona.

Recebe, Senhor, do abismo
Em que me engolfo e debato,
As lembranças agudas em que me pico e cismo -
Meu remorso barato
Que o tempo vai tornando
Todo em cinza saudosa,
Minhas saudades peneirando
Com uma peneira de rosa.

Ah! Tu, Toiro de Fogo, e eu lesma fria!
Tu, Roda de Navalhas retiradas
Das Sete Dores de tua Mãe!
Tu, Tubarão de Amor, e eu a enguia
Que até as águas estagnadas
Têm!

Tu, Sol cortado a diamante,
Que lavra as terras, aprofunda o dia,
Abre o mar ao navio confiante
E cerra a flor cansada e esguia,

Enquanto eu, o morrão grosso,
Encarquilhado, me escureço
E na fogueira do meu osso
Chamusco tudo o que te ofereço.

Mas, já levado nas areias
De que a minha alma faz moinha
E a tua cólera desdoba,
Hei-de enterrar a dor, farinha
Das minhas sementes feias,
Nos sete palmos de uma cova.

Abre, Senhor, teus flancos: pare-me
(Que tu podes) outra vez,
E a chaga densa
Da minha outra vida sare-me!
A tua mão salgada e imensa
Como todos os mares comunicados
Já ressuscita a tua rês:
Ela me acene,
E à tua divina presença
Suba meus ossos branqueados.
Amen.

Vitorino Nemésio