Quanto de altruísmo e de egoísmo cabe no gesto de ajudar os outros? É esse um dos paradoxos em que assenta Diário de uma gota, de Ivete Carneiro. Outro paradoxo é mais assertivo e tem a ver com a obstinação de ensinar um povo que vive numa outra dimensão, em que aprender é algo que parece nunca valer a pena, ou em que o subdesenvolvimento crónico apenas aceita cuidados paliativos.
Repórter e viajante insaciável, a autora decidiu ser mais do que testemunha ou mediadora da informação, vivendo para contar, se cabe aqui a paráfrase do título de García Márquez.
Entregando à Assistência Médica Internacional as próprias férias e dando duas contrapartidas – fazer o que fosse preciso e pôr em livro a experiência, oferecendo a esta ONG os direitos de autor –, passou cinco semanas na Guiné-Bissau e produziu um diário que corre entre o relato factual, a observação crítica e a introspecção, desaguando numa experiência evidentemente literária.
“Bolama é uma bofetada de ruínas e abandono”, escreve a autora, que assina ainda as fotografias, cruas mas ternurentas, mostrando como, da gloriosa ilusão do império, pôde nascer um dos países mais pobres do Mundo. Diário de uma gota é, noutro nível de leitura, um retrato da forma como a tardia descolonização redundou num estado de abandono: nos rostos, nas reminiscências decadentes do passado, num povo incapaz de se estruturar para o futuro.
Vendo um quadro de pobreza extrema e endémica, quem por ali andou noutros tempos poderá, ao ler este diário, chocar-se com a perda de algo que conheceu. Mas isso é um detalhe, mera pincelada na intrincada teia que nos mostra quão chocante pode ser a naturalidade com que um povo convive com a fome, com a doença ou com a morte, sem ambições que transcendam a circunstância de existir.
E a vertente pessoal, uma não escondida descida ao abismo e gradual redenção da autora, mostra-nos os que fazem trabalho humanitário, os expatriados que vêem nada no tudo das terras onde nasceram, tudo descobrindo no nada em que mergulham. Mesmo quando concluem que muito pouco podem alcançar: “Somos todos gotas num país de chuva torrencial. Somos nada".
(Pedro Olavo Simões)
TÍTULO: Diário de uma gota
AUTOR: Ivete Carneiro
EDITOR: Quidnovi
PREÇO: 13.99 euros
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