António é um homem com azar: de cada vez que é despedido, tem problemas com a polícia.
E desta vez só foi apanhado porque é um cidadão exemplar. Sabia que não podia conduzir o motociclo sem carta e nem esperou: encontrou um agente e perguntou-lhe onde ficava a esquadra.
Uma desgraça nunca vem só. Pelo menos na vida de António. Não é que o pedreiro de profissão tem encontros imediatos com a polícia logo nos dias em que recebe a triste notícia de que vai ficar sem trabalho?
Há três anos, a empresa onde trabalhava faliu. Nesse mesmo dia, empurrado por uma enorme emergência, António pegou na mota e foi apanhado pela PSP a conduzir sem carta. Agora, a história repetiu-se. António tinha arranjado um trabalho temporário por três meses e, no dia do crime, voltou a saber que o contrato não seria renovado.
Horas depois de saber que terá de voltar às filas do centro de emprego, ou a bater à porta de todos os construtores que conhece, um valor mais alto se levantou e António não teve outro remédio senão voltar a guiar a mota que, jura pela saúde dos seus filhos e enteados, está parada há três anos. Como tem uma pontaria do caraças, voltou a dar de caras com um agente da PSP. E como não tem o mínimo jeito para ser criminoso, ficou com tanto medo que, antes que o mandassem parar, perguntou logo onde ficava a esquadra. Onde é que uma pessoa se deve enfiar quando está a cometer um crime e não quer ser apanhado? Em frente aos polícias. Não é óbvio?
A história parece uma anedota, mas António detalha o que aconteceu com grande seriedade.
"Estou a trabalhar no Bairro Padre Cruz, mesmo ao lado de casa. O patrão deu-me o encargo de guardar as ferramentas porque a obra já foi assaltada e dava-me mais qualquer coisinha se eu também cuidasse do pessoal. A mota há três anos que não saía lá de casa. Quem a conduz geralmente é o meu cunhado, que paga o seguro a meias comigo."
Mas o réu não acabou de dizer que a mota está parada há três anos? Com certeza não há maneira de o cunhado conduzir a mota mantendo-a parada, mas, pelo sim, pelo não, começamos a tentar imaginar esse cenário, não vá ele ser mesmo possível.
"Tenho uma rapariga que me chama tio a viver lá em casa. Fica lá com as meninas. O pai dela trabalha com a gente e ela saiu de casa e está com alguns problemas na justiça: tem de fazer apresentações na esquadra. E ontem já eram cinco e tal e o meu compadre tinha ido para o Hospital de São José e nunca mais aparecia. E eu às 17h30 tinha de arrumar as ferramentas todas. Mas a advogada da miúda ligou, a avisar que ela não podia faltar a mais nenhuma apresentação. E eu, olhe, que tinha jurado que nunca mais pegava na mota, tive de voltar a pegar nela para levar a miúda à esquadra."
António não tem carta para conduzir um motociclo, sabe que não pode fazê-lo, mas onde é que se dirige? À esquadra. A probabilidade de ser apanhado é, como se vê pelas evidências, efectivamente reduzida. Ou então não, e António atirou-se inteirinho para a boca do lobo.
Antes que a juíza pergunte, ele quer mostrar todo o arrependimento.
"Era a única maneira de eu ir e voltar a tempo de o patrão não ver que me tinha escapado ao trabalho."
O António pode ter sido despedido, mas não era nas últimas horas de trabalho que iria manchar o currículo de funcionário exemplar.
"Se não fosse isso eu não pegava na mota, eu jurei que não pegava mais, eu tenho filhos a quem dar de comer!"
António já viveu 45 anos difíceis. Nunca andou na escola porque a mãe morreu quando tinha dez anos. Sabe escrever e ler apenas o seu nome. É o único que sustenta a casa onde vive com a mulher e seis filhos: três biológicos, outros três a quem deu o nome. A advogada pede atenção à "situação de desespero do arguido, que ficou sem trabalho". O problema é que António tem um cadastro gordo como um texugo que não abona a seu favor: condenações por furto qualificado na forma tentada, dano e ofensas à integridade física e outras por condução sem habilitação legal.
Mas "o arrependimento" e "os seis filhos que tem para criar" também amolecem o coração da juíza, que o condena a pagar 750 euros de multa que podem ser substituídos por trabalho em favor da comunidade.
"Senhor arguido, tem antecedentes pela prática deste crime. Já tinha jurado não voltar a pegar no motociclo e as juras são para cumprir."
"Pois, doutora, eu sei. Ainda se alguém me tivesse mandado parar, mas fui eu que fui ter com a polícia."
"Veja lá não volte a pegar em mais nenhuma mota ou carro."
"Num carro nunca peguei na vida. Muito obrigada, sô doutora. Tenho de acabar de criar os meus filhos."
Desta vez, António safa-se e ainda fica livre para cumprir a sua missão. "Criei os outros filhos, agora Deus me mate se não consigo criar estes."
Sílvia Caneco, aqui