quarta-feira, 17 de agosto de 2011

VIVER NÃO CUSTA

"Viver não custa, o que custa é saber viver", assim falava Raul Solnado, numa das suas célebres rábulas.

Nessa frase cabe um sem-número de actividades, desde as mais astuciosas, a roçar a ilegalidade, até iniciativas que se limitam a explorar impulsos primários do ser humano, como a vaidade ou o bairrismo.

De há uns anos a esta parte, têm-se sucedido, internacionalmente, primeiro, e a nível nacional, depois, concursos cujo objectivo proclamado é encontrar as 7 (número cabalístico) maravilhas.

Foi assim, com a nomeação das novas maravilhas do Mundo e tem sido assim, entre nós, mas acredito que também noutros países, com os monumentos, as paisagens e, agora, a gastronomia. Se com a organização internacional ainda se poderia esperar algum impacto, por exemplo no turismo - a Jordânia, um pequeno país, beneficiou da inclusão de Petra entre os eleitos - quando a eleição passa para o nível doméstico é isso mesmo que sucede: o assunto torna-se numa disputa entre pequenos orgulhos paroquiais de que se aproveitam, e beneficiam, os organizadores.

Não vem mal daí ao Mundo, mesmo que haja pagamentos que terão de ser feitos à empresa estrangeira promotora deste tipo de eventos. Como se dizia no início, custa saber viver e se há quem saiba viver da promoção de rivalidades patetas, honra lhes seja feita.

Tanto quanto sei, falta menos de um mês para serem anunciadas as tais maravilhas gastronómicas. A lista de finalistas é, com uma ou outra excepção, mais ou menos previsível. Não acredito que o concurso despertasse demasiado interesse, não fosse os promotores terem introduzido uma dimensão territorial no concurso, procurando associar as ditas maravilhas com uma região.

Nada de novo, ainda aqui: há os rojões à minhota, as tripas à moda do Porto, a alheira de Mirandela, o cozido das Furnas, a açorda alentejana, etc.. O truque está em transformar a disputa de gastronómica em regional: vota-se não tanto pelo prato como por ser da nossa região. Esta abordagem tem um pequeno problema, quando há pratos emblemáticos que se confeccionam e comem em todo o lado, tendo perdido a eventual conotação que possam ter tido com uma determinada região de onde foram originários. O exemplo mais acabado será o cozido, exactamente por isso chamado "à portuguesa".

Outros dois: os bolinhos de bacalhau e as sardinhas assadas. O primeiro não consta da lista de finalistas, tal como não consta o cozido das Furnas (para os Açores estarem representados, foi preciso ir desencantar um polvo assado no forno, algo que um porta--voz local dizia que só se fazia por lá e, acrescento eu, para melhor no António de Leça e em vários outros restaurantes de Matosinhos). O problema dos outros dois resolveu-se à moda portuguesa: na dúvida, capitaliza-se. Crismados de pastéis, os bolinhos passaram a ser património de Lisboa, enquanto as sardinhas assadas passaram a ser de Setúbal, anexada à capital para efeitos da iniciativa.

Para o justificar foram-se buscar doutas opiniões, avançaram-se argumentos fundados na história, certamente a mesma que colocou a alheira de Mirandela na categoria das entradas. Estamos mesmo a ver, os judeus a serem visitados pela Inquisição e a convidarem os algozes para almoçar: propomos começar pela alheira, antes de passarmos ao cordeiro.

Os pastéis de bacalhau juntam-se, assim, a outras originalidades lisboetas, como o chapéu-de-chuva (ou de sol) ou o encarnado. No caso da gastronomia, deu-se um novo sentido aos Vampiros de José Afonso: eles comem tudo e não deixam nada. Um bom reflexo do país.

Enquanto nos vão chegando notícias da demolição da classe média, e se aguardam os anunciados cortes da despesa pública, não há mal em que nos entretenhamos elegendo o nosso prato favorito. A mim agradam-me os que são feitos de ingredientes ditos pobres e, por isso, mais criativos. As tripas à moda do Porto e qualquer das sopas finalistas cumprem os requisitos. E ajustam-se à conjuntura.

Alberto Castro, aqui