"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres".
Começa assim uma das crónicas mais conhecidas de António Lobo Antunes que acendeu em muitos leitores recordações de um tempo em que havia pobres, remediados e ricos.
Sublinho a palavra remediados, não resisto, porque me parece conter toda uma ideologia, todo um regime.
Ontem, ao ouvir o discurso do ministro da Solidariedade e da Segurança Social, pensei nesse texto chamado "Os Pobrezinhos". Não é que não encontre medidas acertadas e solidárias no rol de intenções do Governo. Mas tropecei noutra recordação: os aumentos de preços das últimas semanas.
Tempos de crise exigem medidas excepcionais: aí está uma verdade que o senhor de La Palice poderia subscrever. E tudo o que pudermos fazer para evitar a fome, a pobreza, a exclusão, parece mais do que justificado. Mas se, ao mesmo tempo que se oferece um almoço a alguém, há milhares de pessoas empurradas para o desemprego e para um custo de vida insuportável, então no fim do ciclo de excepção (diz o minstro que no fim de 2014) vamos ter um número de pobres muito maior do que o de hoje.
Ouvi o discurso todo, e até a clássica citação do provérbio chinês, numa variação respeitabilíssima: "Nuns casos damos o peixe, nos outros ensinamos a pescar". E aqueles que sabem pescar e vão deixar de poder fazê-lo?
O desperdício é sempre um mau princípio, ainda mais se as dificuldades apertam. O ministro anunciou que os medicamentos a seis meses de expirar o prazo de validade deixarão de ser destruídos e serão entregues aos mais pobres por entidades credenciadas. Dá que pensar: os medicamentos com seis meses de prazo de validade são destruídos? Seis meses? Porquê? Para a indústria farmacêutica fabricar mais e su bir o preço? E depois de 2014 volta-se ao mesmo? Não seria melhor repensar o sistema da pescaria?
Outra medida que me deixa perguntas é o aligeirar das regras a que costumamos chamar "da ASAE" nas cantinas e IPSS. Então há regras que podem ser dispensadas sem prejuízo para os consumidores? Então por que razão existem e são impostas e rigorosamente vigiadas? Ou não interessam porque estamos a falar de pobres?
Eram assim os pobrezinhos de Lobo Antunes: "De preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina".
Ana Sousa Dias, aqui