
O argumento é digno de um filme de terror. Olinda, viúva há mais de dez anos, aluga o anexo da casa a um homem que promete ser boa gente. Com o passar do tempo, descobre verdades aterradoras sobre o génio do pacato inquilino.
Maria Olinda irrompe, fúria e desespero, pelo tribunal adentro. Implica com toda a gente: com o segurança que precisa de verificar tudo quanto tem dentro da mala à entrada, com a recepcionista que lhe pede o obrigatório documento de identificação, com os funcionários que lhe suplicam calma - não há necessidade de continuar aos berros, a falar é que a gente se entende, acalme-se um pouco, que se há-de arranjar uma solução para o seu problema, seja ele qual for -, com o segurança que, a dada altura, lhe tenta oferecer um copo de água.
Maria Olinda está mais do que desgostosa, está incrédula, irritada, desesperada. E, acima de tudo, assustada. Alguém vai ter de se responsabilizar por todo o mal que lhe está a acontecer, pelo mal que ainda lhe pode vir a acontecer. Que justiça é esta, que não protege os mais fracos? Maria Olinda é já cansaço. Soluça entre palavras, enquanto conta ao funcionário do tribunal, aos solavancos, tudo por que tem passado.
Maria Olinda, viúva há mais de dez anos, está a receber ameaças de morte. Chegam via telemóvel, madrugada adentro. O telefone fixo não pára de tocar. "Podes ter a certeza que te ponho uma bomba em casa." As mensagens não são anónimas. Olinda sabe qual é a origem do sobressalto e conhece o remetente.
Vêm da parte de Mohamed, um estrangeiro a quem arrendou, há um ano, um anexo da casa. Parecia honesto, o homem. Contou-lhe como chegou a Portugal, um tanto ou quanto desamparado, falou--lhe vagamente dos planos que tinha para conseguir um trabalho, endireitar a vida e regressar ao país de origem num futuro não muito distante. Mais a mais, o inquilino nunca foi de dar chatices. Entrava tarde, saía cedo, pouco parava no anexo. Até que, há coisa de um mês, deixou de pagar a renda. Explicou à senhoria, em primeira mão, que as coisas correram mal na obra onde andava a trabalhar.
Embargaram aquilo e o empreiteiro mandou toda a gente embora. Mas é uma questão de tempo até aparecer outra obra, mil desculpas, minha senhora. Vou pagar a renda não tarda. E foi assim que se passaram dois meses, três meses. E Maria Olinda, viúva, desamparada, a precisar urgentemente daquele dinheiro - os filhos longe, não dão notícias e não quer chateá-los agora, perturbar-lhes as vidas, muito menos pedir-lhes dinheiro.
Há dois meses, a viúva decidiu correr com o inquilino. À hora do chá, entrou-lhe pelo anexo adentro. Acabaram-se as borlas, que a vida custa a toda a gente. Mohamed, homem sempre calmo, excede-se. Grita-lhe, esperneia, jura que não sai, ameaça-a, parte metade do anexo aos murros e aos pontapés. Bibelôs e cadeiras a voar e os vizinhos a chamarem a polícia. No local, os agentes percebem rapidamente que Mohamed está ilegal no país. Algemam-no e levam-no.
Olinda fica só. Limpa as lágrimas, suspira de alívio, volta a casa, faz um chá e fica a ouvir a própria respiração, embrulhada no silêncio misturado com o barulho constante e quase imperceptível do frigorífico. Finalmente, paz. Mas o argumento desta história não difere em muito da fórmula dos filmes de terror, dos mais básicos. Depois de uma primeira tensão, a calmaria total e a vítima convicta de que o pesadelo acabou. Mas nunca acaba - ainda o filme vai a meio.
Mohamed é presente a um juiz, que determina que fique sob termo de identidade e residência. E qual é a morada que o arguido dá? A da casa da dona Olinda, claro está. Mohamed regressa, então, ao anexo, ainda mais furioso - de uma fúria que parece sobrenatural. Ameaça a viúva. Encosta-a à parede, jura que a mata se não o deixar ficar. Olinda fala com os filhos, com os vizinhos.
É preciso tirar aquele homem dali. Como é que não foi preso? Que justiça é esta? O problema maior é que a viúva tem medo de apresentar queixa das ameaças porque sabe que nunca legalizou o arrendamento do anexo. Mohamed não sabe muito de leis, mas sabe o suficiente para tramar a senhoria, se quiser. Com o inquilino solto outra vez, Olinda está desesperada. E irrompe, fúria e desespero, pelo tribunal adentro.
Rosa Ramos, aqui