Roubou um passaporte para poder procurar trabalho fora de Portugal. Esqueceu-se de um pormenor importante: o homem da fotografia não era parecido com ele.
O objectivo era nobre: Ramiro só queria sair do país, que isto de ter 21 anos, viver às custas da mãe e nunca ter conseguido um único trabalhinho nem biscate é triste.
Vai nisto furtou um documento de identificação. A ideia depois era devolvê-lo ao respectivo dono, acompanhado de uma carta onde explicava porque o tinha usado. A passagem para Inglaterra já estava comprada, mas no aeroporto a coisa deu para o torto. Ramiro está na sala de audiências por um disparate que nem sequer foi cometido em seu nome, mas no de Vítor Hugo, um rapaz três anos mais velho e que, ao contrário de Ramiro, tem passaporte português.
Consta nos autos que "o passaporte suscitou dúvidas ao funcionário do aeroporto sobre o verdadeiro titular". "Notou-se logo uma dissemelhança de fotografias. A fotografia do passaporte não correspondia à imagem do senhor presente." Perante isto, Ramiro vem para a sala de audiências acusado da prática de um crime de falsificação de documento agravada. Mas é preciso que se levante e comece a falar para percebermos que afinal o crime era outro. Um homem vem acusado de um crime, chega a julgamento, expõe os factos e afinal sai condenado por outro. Enganos destes também acontecem.
"Senhor Ramiro", começa o juiz.
"Diga, diga", responde Ramiro, com a cintura das calças de ganga suspensa a meio do rabo.
"Quer dizer algo em sua defesa?"
"Não tenho nada a esconder. Já fui à procura de muitos trabalhos e ainda nada. Quis tentar a sorte noutro país e usei o documento dele."
"Dele quem?"
"Do Vítor."
"Mas quem é esse Vítor?"
"É meu primo. Estive em casa dele, vi o passaporte e tirei-o sem ele saber."
Tchan tchan tchan tchan! Afinal não houve nenhuma falsificação de documento, apenas uso de documento alheio.
Ramiro, cabo-verdiano de 21 anos, tinha demasiada urgência de sair de Portugal. Um tipo não tem trabalho e quer fazer-se à vida. Roubou um passaporte em casa do primo, ao próprio, mas esqueceu-se de um pormenor importante: Vítor Hugo até pode ser seu primo, mas pela imagem não passaria por seu irmão ou sósia. Nem sequer por aquele primo que é tão parecido com o outro que os tios passam a vida a trocar os nomes. No aeroporto, como o funcionário não sofria de miopia, astigmatismo ou qualquer outro problema de visão que não permitisse ver o óbvio, Ramiro foi logo apanhado: ou tinha passado por um extreme makeover recente ou jamais poderia ser o Vítor Hugo do passaporte.
O tribunal quer agora saber com que rendimentos vive.
"Estou desempregado."
"Há quanto tempo?"
"Nunca trabalhei. Fiz o 9.o ano e nunca consegui arranjar trabalho. A minha mãe é que trabalha para nós. O meu pai está cá, mas está preso."
O advogado de defesa tenta a absolvição, por o arguido vir indiciado de um crime que afinal não cometeu, porque nada falsificou. Podia ter tentado alterar a fotografia, mas nem isso: lá no fundo devia acreditar que podia passar pelo primo. Afinal, se é tudo sangue do mesmo sangue, devia ser tudo imagem da mesma imagem. O defensor oficioso alega ainda como atenuantes o arrependimento e o estado de necessidade que terá levado o arguido a cometer o acto ilícito. O juiz está tentado a acreditar que o crime foi cometido com um fim nobre: arranjar trabalho.
"O tribunal está em crer que foi o desespero que o levou à ilicitude."
Os sermões são reservados aos mandriões. Um rapaz não pode ser censurado por querer trabalhar.
Ramiro é condenado a 90 dias de multa, à taxa diária de cinco euros.
"Senhor Ramiro, compreendeu a sentença?"
Ramiro está aflito.
"Aaaaaaaa..."
"Terá de pagar 450 euros de multa. Se não puder, pode pedir para substituir por trabalho comunitário, o que, na sua condição, seria o ideal para si."
"Obrigado, eu só queria um trabalho para a minha vida, para ajudar a minha mãe."
Ramiro, como já se disse, não trabalha. Aliás, nunca trabalhou. Mas na leitura da sentença o tribunal considera-o "razoavelmente inserido na sociedade". Porque "tem vontade de trabalhar". Toda a gente percebe o drama de um homem sem trabalho.
Sílvia Caneco, aqui