sábado, 30 de julho de 2011

QUANDO OS MELROS CANTAM

Diante da casa que habito, um melro. Canta que se desunha.

Todas as manhãs, bem ainda pela madrugada, não se incomoda por acordar-me nem receia que me abespinhe.

Sabe prestar o sublime favor de anunciar que ele e eu estamos vivos e conscientes para um acto de gratidão ao Criador pelo dom e harmonia da natureza.

E, nesses momentos, grandes recordações são atraídas à minha memória pelo que se desenrolava, outrora, na vida do garoto de calções, que fui.

De penas pretas ou de um castanho-escuro salpicado e de bico amarelo, os melros eram alvo da cobiça do rapazio. Eu e os outros companheiros armávamos ciladas, no intuito de apanharmos algum para o metermos numa gaiola, onde seria ensinado a cantar a nossa inocência. Confesso que não me lembro ter, alguma vez, apanhado um, sequer.

Mas era fascinante sentir a aldeia acordar ao som do cantar dos diversos melros, nos desafios entre si e com o acompanhamento dos trinados de outras diferentes e numerosas aves que se empertigavam pelos ramos das árvores, onde também faziam os seus ninhos.

Nostalgia pura, isto? Não. Apenas um situar as nossas pessoas no meio de um universo no qual todos nós ocupamos aquele espaço que deve ser compartilhado e animado por qualquer indivíduo no seu tempo e lugar.

Conservar a natureza em estado de equilíbrio ecológico e moral é obrigação normal para todos. Fazer este mundo sempre melhor, mais justo, atraente, alegre e feliz, harmónico e respeitador ou respeitado é tarefa que compete ao rico e ao pobre, ao pequeno e ao grande, ao patrão e ao empregado, ao governante ou ao governado. É na conjugação dos pés que se movem e das mãos que se levantam para o alto que há-de encontrar-se o projecto de construção deste globo inacabado e, sempre, em crescimento.

Bendito melro, porque entoas os teus hinos de tons naturais e lídimos, a entrarem pelo meio da minha janela e acordarem o meu viver, levando-me, nas asas da memória, a evocar tempos idos.

Quero pedir-te perdão pelas vezes que te persegui na figura dos teus semelhantes antepassados, quando eu era pequenito.

Agora, permite que te fique sempre agradecido pela tua voz cristalina mais melodiosa, porque verdadeira, do que o grasnar, camuflado entre dentes, dos “melros” desta sociedade quando querem não acordar, mas adormecer-nos entre os panos frios da miséria e da desordem.

Padre Manuel Armando, aqui