domingo, 27 de março de 2011

"SE ME FIZEREM UMA ESCUTA ENCONTRAM MATÉRIA"

O bastonário da Ordem dos Advogados falou ao i na semana em que o governo se demitiu. Marinho e Pinto admite que a crise política vai ter consequências graves para um sector tão em destaque como a Justiça.

A crise política adiou a resolução de alguns problemas urgentes na Justiça?
Há dossiês que estão a ser analisados e estudados pelo governo e, pela ordem em que estão, vão ficar a aguardar novo governo. A acção executiva, por exemplo, e outras reformas em curso, que estão em análise e que a queda do governo vai suspender e atrasar. Da parte da Ordem vai atrasar a revisão dos estatutos, que iríamos entregar brevemente.

Vai haver um novo estatuto?
Vamos fazer algumas alterações do actual a nível da formação. É para que, entre outras alterações, só possam ser admitidas a estágio as pessoas com mestrado, como acontece no Centro de Estudos Judiciários (CEJ).

Ou seja, para exercer, a partir de agora, só com mestrado?
Só com mestrado. As licenciaturas pós-Bolonha não habilitam, ao nível do conhecimento científico, os licenciados ao exercício de uma profissão forense.

Mas é por culpa de quem forma ou de quem é formado?
Não é importante encontrar culpados. É uma constatação de que não chega. E quem o reconheceu foi o próprio Estado. O Estado instituiu o processo de Bolonha e a seguir disse que os licenciados nem sequer com um exame podem entrar no Centro de Estudos Judiciários. Os recém-licenciados não podem ser magistrados.

E por isso também não podem ser advogados?
Não devem poder ser advogados. Os advogados não podem ter uma formação académica inferior à dos magistrados, sob pena de desequilibrar a balança da Justiça.

Os advogados mais novos não vão ficar zangados?
Não têm de ficar zangados, têm de aceitar a realidade. Não ficaram zangados por não poderem entrar no CEJ. E o Centro de Estudos Judiciários até podia fazer um exame e escolher os melhores. Nós tínhamos um exame nacional de acesso para os licenciados, o Tribunal Constitucional considerou-o inconstitucional e prevê que esse exame pode existir, desde que esteja previsto nos estatutos. Nós defendemos agora que, sem exame, deve-se fazer uma alteração nos estatutos, no sentido de que só se deve exercer advocacia com o grau de mestre.

Diz que há advogados a mais...
Sempre o disse. As necessidades da advocacia em Portugal seriam melhor satisfeitas se houvesse cerca de 10 a 12 mil advogados, mas a ordem não cuidou de regular o acesso à profissão e abriu indiscriminadamente as portas. Hoje temos 28 mil advogados a trabalhar, mas não há trabalho para tantos. Se um advogado tiver quatro ou cinco clientes pratica determinado preço, se tiver só um será tentado a cobrar o que em condições normais cobraria aos quatro ou cinco. O Estado percebeu isto em relação a outras profissões liberais, mas parece haver sectores do governo que o não aceitam em relação à advocacia. É o que acontece com os taxistas. Há um interesse público em não deixar massificar a profissão. E não há interesse em que haja no mercado um número de advogados superior àquele que é necessário.

Diz que a "espectacularidade de certas investigações é inversamente proporcional aos seus resultados". A propósito do processo Face Oculta, é isso que vai acontecer?
É isso que tem acontecido com as grandes investigações e com os grandes processos, com nomes muito pomposos como Operação Furacão, Face Oculta, enfim. São processos que têm vindo por aí, que têm muita espectacularidade, muita dimensão mediática, mas poucos resultados. Há um exemplo de eficácia de investigações no estrangeiro, como o caso Madoff nos Estados Unidos. Foi detido, julgado e condenado no espaço de meses. Isto porque a polícia andou mais de dois anos a investigá-lo, em silêncio, com eficácia. Em Portugal, infelizmente, mal começam uma investigação e fazem uma escuta telefónica ou apanham um facto aparece logo nas manchetes. E depois tudo é espectáculo. Há jornalistas a defender os investigadores, os investigadores a municiar jornalistas. E alguns até se constituem assistentes para ir aos processos tirar as escutas e transcrevê-las nos jornais. É todo um espectáculo que degrada quer a informação, quer o país, e não há resultados. As investigações são más. Por isso é que tentam suprir a sua falta de eficácia com espectáculo nos órgãos de informação.

Então a responsabilidade das investigações serem más é de quem, de dentro das polícias, fala de mais?
Não, não disse isso. Estou a constatar um facto: há uma promiscuidade óbvia entre maus jornalistas e maus investigadores. Há os maus jornalistas que obtêm boas, ou más, histórias sem custo nenhum, sem investigação nenhuma, e transformam muitas vezes em notícias as meras opiniões de investigadores. E há o caso dos investigadores, porque não apresentam resultados reais nos processos e dão de si uma imagem gloriosa nos órgãos de informação, através dessa promiscuidade com os jornalistas. São os jornalistas de serviço à investigação criminal.

Os investigadores, neste caso, são polícias ou magistrados?
As duas coisas, o mal atinge ambos. Há bons polícias e bons magistrados, mas os que fazem espectáculo nos jornais são maus polícias e maus magistrados.

Como, por exemplo, aconteceu nos processos Face Oculta e na Operação Furacão?
Na Operação Furacão foram feitas buscas a escritórios, em que os jornalistas são previamente avisados para lá irem fotografar. É esta a investigação criminal em Portugal. Já tivemos casos em que os magistrados foram ao parlamento para deter deputados e já lá estavam cadeias de televisão à espera.

Está a falar do processo Casa Pia...
Eu não cito processos...

Na cerimónia de abertura do Ano Judicial tirou o colar de bastonário. Os seus críticos fizeram questão de dizer que a partir do momento em que o tirou já não estava a representar os advogados. Como responde aos seus críticos?
Quem são os meus críticos? O Dr. Magalhães e Silva? Não lhe vou responder. Tomo, enquanto bastonário, as atitudes que considero serem as mais adequadas à defesa da dignidade e da defesa dos interesses da Justiça, da advocacia e dos cidadãos que os advogados representam nos tribunais. Sempre houve advogados que não ficaram muito agradados com as minhas tomadas de posição, mas a maioria gosta e escolheu-me duas vezes sucessivas para os representar. É porque estão, de algum modo, contentes com a forma como os represento.

Foi uma votação expressiva...
Mas haverá sempre pessoas descontentes. O Dr. Magalhães e Silva deveria ser a última pessoa a fazer apreciações, porque propôs-se ser bastonário, concorreu comigo e perdeu. Ao falar sobre as minhas ideias pode levantar a ideia de que ainda não digeriu a derrota e que está a fazer uma espécie de vingança pessoal. Além disso, ele esteve para ser candidato outra vez e nem para isso os meus opositores o quiseram, escolheram outro, que teve o mesmo resultado que ele. Mas ele pode exprimir as suas opiniões à vontade.

É um caso de mau perder?
Sugere ter mau perder, mas não é uma pessoa que se tenha revelado no seio da advocacia portuguesa pela lucidez das suas análises. E como tal não é uma pessoa que ouça com atenção.

Quis representar o advogado anónimo na abertura do Ano Judicial. Do ponto de vista do cidadão anónimo, a Justiça é um luxo?
O Estado transformou a Justiça num bem de luxo e quase se pode dizer que a vende a preços de mercado. As custas judiciais proíbem o acesso à Justiça. O Estado encontrou uma maneira de o proibir e encareceu-a de tal forma que a Justiça não é acessível aos cidadãos com menos recursos económicos. Devia haver quem tivesse coragem de acabar com as custas judiciais, como aconteceu em Espanha, onde a Justiça é gratuita. Estamos a falar de um bem que é essencial à pacificação social.

É um direito...
A Justiça é um direito, e se nós pagamos impostos é para que o Estado nos forneça aquilo que mais ninguém pode fornecer. A taxa justifica-se quando as pessoas podem recorrer a outro fornecedor do mesmo bem. O Estado asfixia cidadãos e empresas com impostos e depois exige-lhes que paguem taxas. Eu pago impostos, mas tenho ainda de pagar as auto- -estradas, através das taxas das portagens exorbitantes que nos cobram, tenho de pagar o ensino superior, através das propinas, tenho de pagar a Justiça à parte, através das custas, nos hospitais, através das taxas moderadoras. Isso está errado. Só deveria haver taxas onde o Estado proporcione o serviço que o cidadão possa obter noutros locais. O Estado fornece em exclusivo determinado bem e cobra taxas por esse bem. É uma grave amputação de uma das dimensões essenciais do próprio Estado de direito.

Disse que a corrupção alastrou a todos os níveis do aparelho de Estado. Quer esclarecer que níveis são esses?
A frase diz tudo. Temos pessoas nos mais altos cargos do Estado a enriquecer, mas não me venha perguntar nomes. As entidades que averiguem Eu falo do que vem nos jornais. Há pessoas que andam por aí anos e anos a enriquecer no exercício das funções públicas ao mais alto nível do Estado. E parece que ninguém se incomoda com isso, acham natural. Será que estou errado? Depois vem por aí abaixo do aparelho de Estado até às autarquias. Vamos às autarquias e, num balcão qualquer, criam artificialmente dificuldades aos cidadãos para depois, por trás, vender facilidade. Isto é corrupção.

A corrupção é endémica?
Onde há poder, há corrupção. Acabar com a corrupção é uma utopia. Poderá não ser tão descarada, reduzida a níveis que não sejam tão danosos para a viabilidade e dignidade do Estado e para o próprio desenvolvimento e progresso social. Subverte as regras do desenvolvimento económico e faz com que as piores empresas sejam mais lucrativas. E que tenham mais serviços do Estado os empresários mais hábeis em influenciar os decisores públicos.

O que está a falhar?
Tem falhado tudo. A falta de vontade política e um sistema judicial que não se adaptou à modernidade, que está voltado para as profundezas do seu próprio umbigo, desalinhado com as necessidades da sociedade. O sistema judicial português entrou em conflito com a própria modernidade e desenvolvimento. Veja como funcionam os tribunais: tudo lá é superlativamente oco, prisioneiro dos formalismos e de umas liturgias que não têm nada a ver com as exigências actuais.

Um juiz queixou-se de ser alvo de escutas telefónicas. O bastonário dos advogados fala à vontade ao telefone?
Eu não, e há muito tempo. Mas é mais com medo dos juízes do que de espiões. A Justiça abusa das escutas telefónicas em Portugal. Não sabem investigar sem colocar as pessoas sob escuta. Colocam todas as pessoas sob escuta e às vezes sem saber quem são as pessoas. É o método de arrasto, há-de apanhar-se alguém. Fazem uma escuta por causa disto e depois apanham por causa daquilo. Se escutassem 10% dos juízes em Portugal, escolhidos aleatoriamente, com certeza havia material para instaurar processos a todos eles. Mas quem diz dos juízes, diz de qualquer outro, até de mim. Se me fizerem uma escuta vão apanhar qualquer matéria para me processar. Agora talvez já não, que vou tendo cuidado, até nos restaurantes e na via pública.

Quer dizer que a Justiça está desgovernada, como diz o procurador-geral da República?
Há meios no mercado que permitem escutar com a maior das facilidades. A partir do momento em que não conseguem impedir as empresas de fabricar esse equipamento, este vai sempre chegar às mãos das pessoas. É como a droga. A tecnologia está aí.

Chegou a participar criminalmente do director-geral dos serviços prisionais, devido ao caso do taser?
A Ordem participou criminalmente contra incertos, os agentes que não conseguimos identificar, e contra o director do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira, porque presumimos que aquilo se passou com a sua autorização. De qualquer forma, compete ao Ministério Público averiguar as circunstâncias em que ocorreram os factos, se os mesmos constituem crime e quem são os responsáveis. O Conselho Geral deliberou fazer a participação e é a Ordem dos Advogados que a faz, no cumprimento de um dos seus mais indeclináveis deveres estatutários, que é a defesa do Estado de direito. Num Estado de direito não podem acontecer factos daqueles. Um preso que não dá quaisquer sinais de resistência, nem de desobediência ter aquele tratamento. Aquilo é para aterrorizar.

É um atentando aos direitos humanos?
Flagrante. Uma pessoa diminuída na sua liberdade, presa, ser sujeita àquele tipo de tratamento. Isso não pode acontecer em Portugal. Está documentada em filme e fizemos queixa ao Ministério Público que dirá de sua justiça.

Retirada daqui