Ele era um homem desiludido.
Era a primeira coisa que se lhe lia no rosto e nos gestos, pesados e lentos.
Era o proprietário de um pequeno restaurante, mais ou menos transmontano, situado na esquina de uma rua simpática de uma povoação agradável.
Havia um separador no meio da rua, ladeado de árvores, onde nas tardes de verão os mais velhos jogavam bolas de um metal brilhante e liso, que lembravam gotas de mercúrio caídas de um termómetro gigante.
As bolas eram atiradas umas contra as outras provocando um baque metálico que o atraía sempre até à porta do seu restaurante. Ficava encostado na ombreira da porta, e observava os jogadores sem nunca se juntar a eles, o olhar vagamente perdido de quem não está verdadeiramente presente. Com o fim da tarde os jogadores entravam, sentavam-se ao balcão do restaurante, e bebiam cervejas em silêncio, num arremedo de convivialidade mais próprio de famílias do que de companheiros de jogo.
As bolas eram atiradas umas contra as outras provocando um baque metálico que o atraía sempre até à porta do seu restaurante. Ficava encostado na ombreira da porta, e observava os jogadores sem nunca se juntar a eles, o olhar vagamente perdido de quem não está verdadeiramente presente. Com o fim da tarde os jogadores entravam, sentavam-se ao balcão do restaurante, e bebiam cervejas em silêncio, num arremedo de convivialidade mais próprio de famílias do que de companheiros de jogo.
Entretanto na esplanada do restaurante juntavam-se outras famílias, estas mais faladoras: o pai, a mãe e dois rapazes pequenos, que comiam sempre saladas, e discutiam sempre entre as garfadas; as duas solteironas da casa da frente, que diziam mal dos maridos das outras; e, às vezes, um grupo de donas de casa que entre copos diziam mal dos próprios maridos. E ele no bar, em silêncio e imóvel; só um sinal vindo da esplanada o fazia mover-se e sair com cervejas na mão.
Era, na verdade, uma forma de eficiência muito própria, que não gastava energia com movimentos supérfluos, a saída para a esplanada em passos ensaiados muitas vezes, precisos e lentos, um dois três até à mesa do canto, meia volta mesa do meio, quatro, cinco, seis voltar ao balcão.
Esta mecanicidade de movimentos, esta poupança de energia, tinha-a herdado da mãe, como aliás quase tudo. A sua mãe era loura e pesada, e tinha nos olhos claros a resignação de quem não era feliz. Era dela a cozinha do restaurante, e aí tinha criado o seu domínio, movendo-se lenta e economicamente entre os balcões.
Quando não tinha para quem cozinhar -o que não era raro, sobretudo de inverno, quando não havia esplanada para atrair famílias- , sentava-se numa mesa ao fundo do restaurante, onde tinha recriado a sua sala de estar, completa com naperons, candeeiro para a leitura, revistas de lavores e cesto de costura, e aí passava a noite em silêncio, sem nunca olhar o filho, que encostado ao balcão servia cerveja aos habituais.
A semelhança entre ambos era tão evidente, mas mesmo assim seria difícil esquecer que ele tinha tido um pai, não só pelo seu nome, nem pelo menu vagamente transmontano do restaurante.
Já tinham passado alguns anos desde que o seu pai morrera, mas a rotina da mulher e do filho não se alterara. Continuavam a trabalhar no restaurante, ela na cozinha, ele ao balcão, e ainda viviam na mesma casa. Tinham um acordo tácito, contruído durante anos de vassalagem a uma personalidade mais forte, que lhes permitia viver com um mínimo de comunicação, num ballet de exclusão minuciosamente coreografado.
Às vezes ele sonhava. O sonho era sempre igual: o pai estava morto, e ele sentia uma nostalgia imensa. Umas vezes acordava e o sonho acabava aqui, deixando-lhe um sabor tão amargo que a culpa durava dias a fio; outras vezes, depois de voltar a adormecer, voltava a sonhar e no sonho fechava o restaurante, fechava a porta de casa, e saía com uma mala para nunca mais voltar. Via-se então muito longe, ao sol, rodeado de oliveiras e vinhas, a respirar um ar doce de fruta e flores, húmido de sal.
Aí era feliz como nunca tinha sido feliz, e sentia o coração expandir-se dentro do peito, como quem respirasse profundamente, até estar tão cheio, tão pesado, que o peito se lhe apertava, afogando-o, e a pressão tinha de se aliviar em lágrimas, que lhe caíam pelo rosto redondas e quentes. Mas então acordava sempre, e voltava à rotina como se nada fosse, os olhos já secos, o peito espaçoso e vazio.
Quando estava acordado, pensava. Pensava e repensava, ensaiava mil vezes um discurso que sabia que nunca faria. E esperava. Esperava que nunca tivesse que o fazer, que o tempo fizesse o seu trabalho e o poupasse.
Um dia o restaurante não abriu, pela primeira vez em muitos anos, num dia que não o de Natal.
E também não abriu no dia a seguir, nem no outro, nem na semana seguinte.
Começou a constar que tinha sido trespassado e que abriria umas semanas mais tarde, tendo ao balcão um homem de bigodes aguerridos e físico rotundo, de olhos brilhantes e passos mais ligeiros.
Alguém a quem a câmara municipal teria de abrir bastante os cordões à bolsa, já que tinha intenção de demolir o imóvel para construção da futura alameda.