quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

REGRESSO À CASA ONDE MATOU O PAI

A história do rapaz de 16 anos que fez 20 quilómetros a pé, descalço, por entre a geada das estradas da Pampilhosa, para se entregar à polícia e confessar o homicídio do pai, quebrou o sossego da região da beira-serra.

Na aldeia de Esteiro, onde aconteceu o crime, não moram sequer 60 pessoas. Durante uns dias, não falaram de outro assunto no café, mas agora a incredulidade começa a dar lugar ao silêncio.

A noite ia adiantada quando, no interior do posto da Guarda Nacional Republicana (GNR) da Pampilhosa da Serra, alguém ouviu bater à porta. Já passava das duas da manhã. O militar de serviço dirigiu-se à entrada principal do posto e, na soleira da porta, deparou-se com um rapaz, de pés descalços e em ferida, ar ofegante e cansado. "Matei o meu pai. Está em casa, no Esteiro", terá dito aos guardas.

Entre a vila da Pampilhosa da Serra e a aldeia de Esteiro são vinte quilómetros de uma estrada de montanha que sobe e desce a serra, atravessa o vale rasgado pelo Zêzere e termina na encosta direita do rio. Vinte quilómetros de floresta cerrada, com uma casa aqui e outra acolá, que podem demorar meia hora a ser percorridos de carro e mais de duas horas a pé.

Na madrugada de 24 para 25 de Janeiro, o percurso que a GNR fez de carro até ao Esteiro foi o caminho que, horas antes, João Fernandes, de 16 anos, tinha feito em sentido inverso, a pé e descalço, para se entregar no posto e confessar que tinha assassinado o pai, em casa, com uma catana. Quando a GNR chegou ao local, Carlos Jesus, de 55 anos, estava já sem vida, estendido no chão da sala.

Em Esteiro, apesar do silêncio que à noite cai sobre o lugar, ninguém se apercebeu de nada. Nem os vizinhos mais próximos, como Alberto Lopes, de 59 anos, reformado depois de ter trabalhado mais de 26 anos na GNR. Por causa do barulho da máquina para a apneia do sono, só acordou com as luzes e o barulho dos veículos a estacionarem em frente a casa. Nem se apercebeu o inglês de meia-idade, que acaba se mudar para Esteiro para desfrutar dos encantos bucólicos da beira-serra e que prefere nem falar do crime que aconteceu na semana em que chegou à aldeia. E nem mesmo a família Fernandes: segundo os testemunhos que prestaram à polícia, a mãe estava a dormir no quarto, e Jorge, o irmão do meio, passou a noite toda a estudar para o exame de Matemática do 12.º ano que teria na manhã seguinte e, à hora do crime, estaria já também deitado. Só se aperceberam do crime quando a GNR chegou ao local.

O que aconteceu ao certo naquela noite, e o que levou João Fernandes a atacar o pai com uma catana de cabo de madeira e de lâmina comprida, permanece ainda por esclarecer. Mas, no depoimento que prestou à Polícia Judiciária (PJ), o jovem de 16 anos falou na relação conflituosa que tinha com o progenitor, electricista reformado, e denunciou alegados maus tratos físicos e, em particular, revelou ter sido abusado sexualmente pelo pai há cerca de cinco anos. Uma afirmação difícil de comprovar ou de desmentir, já que, entendem os investigadores da PJ, é "improvável que, passados tantos anos, exames periciais consigam provar a existência dos alegados abusos sexuais". A família diz nunca se ter apercebido de nada.

A investigação da PJ está numa fase inicial, depois de o processo ter sido remetido para o Tribunal de Instrução Criminal, que decidiu que João Fernandes deverá permanecer em prisão domiciliária. A prioridade dos investigadores passa agora por reconstituir a história familiar e as tensões que podem estar na origem do crime. "Este tipo de crimes não é muito frequente, mas vai acontecendo, sobretudo nas regiões interiores do país", diz um investigador da PJ.

A história deste crime quebrou o sossego bucólico da beira-serra. No Café Bar"il, em frente à igreja da Pampilhosa, as paredes estão forradas a fotografias a preto e branco. São cenas da vida quotidiana da vila, tradições religiosas, momentos históricos e retratos de pessoas. Há imagens que evocam a visita, em 1970, de Marcelo Caetano à Pampilhosa, uma viagem às origens do então presidente do Conselho, filho de pais que nasceram na região. Outra fotografia assinala o momento, em 1939, em que o primeiro transporte rodoviário chegou à vila com encomendas e correio. Outras imagens retratam o início da construção da Barragem de Santa Luzia ou o trabalho dos mineiros na antiga mina da Panasqueira. Habitualmente, os clientes perdem-se a olhar para as imagens, a descobrir parentes próximos e afastados, a falar sobre a vila. Mas não por estes dias. "Eu nem tenho conseguido dormir bem. Esta história abala qualquer um. Foi para mim a maior surpresa do mundo. Ainda no domingo [véspera do homicídio] passei pelo rapaz. Ia cabisbaixo. Perguntei-lhe: "Então, estás bom?". Ele balbuciou qualquer coisa e foi à vida dele", diz Alberto Jesus, um morador da freguesia de Janeiro de Baixo, de 62 anos."Pobre rapaz"

João Fernandes é o mais novo de três irmãos que cresceram no Esteiro e estudaram nas escolas da Pampilhosa. Ricardo, o mais velho, tem 21 anos e está na tropa no Regimento de Artilharia n.º 4, em Leiria. Fisicamente é o que mais se assemelha ao pai, recordado por ser "um homem forte, espadaúdo", que, mesmo nos dias de frio intenso, era visto de mangas cavas e chapéu de cowboy. Jorge, o irmão do meio, tem 19 anos, estuda na Escola Secundária de Arganil e falta-lhe o exame de Matemática para concluir o 12.º ano. João frequenta o 10.º ano da Escola Básica Integrada da Pampilhosa, no curso científico-natural, depois de ter abandonado o curso profissional de empregado de bar e mesa. "Não gostava muito daquilo", diz um funcionário da escola.

Hoje em dia, na casa de Esteiro, depois de o irmão mais velho ter saído para a tropa, viviam apenas a mãe, Alice, o pai, Carlos, e os irmãos Ricardo e João. Os vizinhos que frequentavam a casa descrevem uma relação próxima entre os dois irmãos e entre João e a mãe Alice, que tem 57 anos e está reformada. Era o filho mais novo que, no dia-a-dia, mais ajudava a mãe, debilitada pela doença de Parkinson. Hoje, para se manter de pé, Alice precisa de estar sempre apoiada, e é assim que está, com as mãos sobre a mesa, toda vestida de negro, na sala de casa.

Mãe e filho do meio rejeitam falar sobre o que se passou. É Ricardo quem avisa, mal entramos em casa, que não pretendem dizer nada acerca do caso. Ao lado, Alice limita-se a abanar a cabeça, olhar cabisbaixo em direcção à lareira acesa, no canto da sala. Repete baixinho: "Pobre rapaz. Descalço... Pobre rapaz...", murmura.

Cozinha e sala de estar estão instaladas nesta mesma divisão, no rés-do-chão de uma casa humilde que tem mais dois pisos. No centro, a separar a banca da cozinha do sofá instalado em frente à lareira, há uma mesa e um móvel de madeira, onde em breve deverá ser instalado o equipamento que recebe os sinais da pulseira electrónica.

Numa comunidade que se debate com o insucesso e o absentismo escolar, João é descrito pelos colegas e funcionários que o conheciam da escola como um "aluno razoável", "que nunca faltava à escola" e um rapaz "cinco estrelas", "pacato" e "silencioso", a quem, por vezes, era quase "preciso arrancar uma palavra". Na cela da Directoria de Coimbra da Polícia Judiciária, onde passou algumas noites detido, esteve quase sempre em silêncio e quase que "alheado de tudo". "Parecia exausto. E estava sempre alheado, quase como não fosse nada com ele", diz um investigador da PJ.

"Se fez uma coisa destas era porque tinha um motivo muito forte", diz um amigo da escola, expressando uma opinião que é partilhada por muitas pessoas que conviviam de perto com o rapaz. Para demonstrar "apoio" a João Fernandes, os colegas da turma do 10.º ano organizaram na última quinta-feira uma vigília nocturna, na qual deixaram mensagens de apoio ao amigo, que está agora no Estabelecimento Prisional de Viseu e que em breve será transferido para casa, onde ficará, com pulseira electrónica, em prisão domiciliária. "Apesar de tudo o que fizeste, estaremos sempre contigo", foi uma das mensagens que quiseram transmitir.Além de frequentar a escola da Pampilhosa, João Fernandes participava nas actividades do projecto Trilhos Inova, uma iniciativa promovida pela Câmara da Pampilhosa, dirigida a crianças e jovens entre os seis e os 24 anos de idade, que procura responder aos problemas que afectam a população jovem de um dos concelhos mais desertificados e envelhecidos do país. Por e-mail, a responsável pela entidade promotora do projecto, Alexandra Tomé, descreve as inúmeras dificuldades a combater: "Insucesso escolar, a falta de expectativas/oportunidades escolares, pessoais e profissionais, comportamentos de risco, ofertas educativas limitadas, absentismo escolar, baixa participação em actividades culturais/desportivas e baixo nível de empreendedorismo.

Em 40 anos, a população residente na Pampilhosa da Serra diminuiu cerca de 40 por cento. E a freguesia onde se verificou a maior perda foi em Janeiro de Baixo, onde fica Esteiro. Mas, aproveitando as paisagens deslumbrantes da região, começa hoje a surgir uma nova oferta turística que está a tentar travar a crescente desertificação. Em Janeiro de Baixo e Janeiro de Cima, que integram a Rede das Aldeias de Xisto - o projecto engloba 21 municípios da Região Centro e dezenas de aldeias que estão a ser reabilitadas para criar uma nova oferta turística, baseada na cultura, no património e nas paisagens do mundo rural beirão - já há pessoas a instalarem-se e a desenvolverem novos projectos.

Desde Janeiro, por exemplo, que as Aldeias de Xisto têm um espaço de venda dos seus produtos em Barcelona.

Em Janeiro de Cima, numa casa recuperada, feita de xisto e de pedras do rio, existe hoje o restaurante Fiado, gerido por Belarmino Lopes, um designer gráfico que, aos 57 anos, decidiu mudar-se do Fundão para a aldeia. É um pequeno investimento mas está já a mexer com a economia local. "Porque vêm cada vez mais pessoas de fora. Porque nos abastecemos nos pequenos produtores da zona e porque, ao mesmo tempo, empregamos já duas pessoas: um cozinheiro e uma empregada de vinte e tal anos, do Fundão, que de certeza não tinham nos planos mudarem-se para Janeiro de Cima", diz Belarmino Lopes.

À sombra da barragem.
Mas, ao contrário de outras aldeias da região, Esteiro cresceu à sombra da barragem e da central eléctrica de Santa Luzia. Há vinte anos viviam no lugar mais de 300 pessoas, a maior parte das quais trabalhava na central eléctrica. Depois, com a introdução de soluções tecnológicas, a central passou a ser gerida à distância e os trabalhadores foram sendo dispensados. "Hoje não moram aqui mais do que 60 pessoas", contabiliza Manuel Jesus, um dos moradores mais antigos de Esteiro, olhando para o largo central, vazio ao final da tarde.

Todos se recolhem do frio. No café da terra, o lume está aceso. Cinco homens estão sentados numa mesa, outro está ao balcão, a dormitar com um copo de vinho na mão. Estão em silêncio porque o dono já não permite que se fale mais do caso de João Fernandes. Por uns dias, não quer "ouvir falar mais no assunto". Mas será por pouco tempo. Em breve, o jovem de 16 anos voltará a casa, onde ocorreu o crime, para permanecer em prisão domiciliária até à realização do julgamento.

André Jegundo, aqui