sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

COMO FOI NOTÍCIA O INÍCIO DA GUERRA COLONIAL ULTRAMARINA HÁ 50 ANOS


"Cem terroristas" atacam o império de Salazar. No rescaldo do desvio do paquete 'Santa Maria', os portugueses são surpreendidos com o assalto a representações em Luanda.

Mais do que um golpe contra a ditadura, a rebelião expressa a primeira contestação ao colonizador e inicia o movimento independentista que obrigará à recruta dum milhão de soldados para três frentes de guerra. Salazar reage, pressionado pela comoção popular, mas morre sem achar a solução política que todos querem.

Salazar entrou no seu gabinete em São Bento e viu a primeira página do Diário de Notícias de 5 de Fevereiro de 1961. Sabia o que o esperava porque, no dia anterior, os acontecimentos lhe tinham sido comunicados e parte da noite fora de preocupação sobre o que se atravessava à frente da sua governação.

Não gostou do que estava impresso nas duas colunas da direita, mas ficou agradado com a mancha de notícias que dominava as quatro da esquerda. Aquela que mais o importunava era a notícia de que "Grupos armados tentaram assaltar ontem em Luanda a Casa de Reclusão, o Quartel da PSP e a Emissora Oficial". Aquela que mais bem disposto o deixava era o título que fazia a confirmação pública de que "o paquete Santa Maria voltou à posse do comandante e tripulantes". Uma notícia compensava a outra...

Se nesses dias fosse possível Salazar aperceber-se da verdadeira dimensão do significado dos ataques dos insurrectos em Angola, provavelmente nem uma linha teria sido publicada no jornal, tal como o presidente do Conselho iria mandar que fosse a regra nos anos seguintes, através de censura efectuada pela PIDE, que deixará em branco várias vezes as páginas do jornal dirigido por Augusto de Castro.

As notícias sobre o 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda eram no dia seguinte ainda bastante difusas na metrópole, situação que se mantém inalterada até aos dias de hoje devido à inexistência de um esclarecimento definitivo, por via da História, do que foram esses factos e dos seus autores exactos. Se ao regime de Salazar interessava lançar a dúvida sobre a verdade, e até culpar quem interessasse às autoridades - das colónias e em território continental -, também nunca ficou conhecido o verdadeira rosto dos responsáveis por estes ataques independentistas que marcaram o início da verdadeira contestação à manutenção por Portugal das suas províncias ultramarinas.

Nem a história pós-independência de Angola ainda se preocupou com essa investigação e registo até ao momento, justificando-se com a sangrenta guerra civil posterior ao 25 de Abril de 1974 e até com o facto de existir uma história oral que caracterizará a passagem de testemunho nas ex-colónias.

No DN do dia seguinte referem-se "quatro grupos de indivíduos armados" que pretenderam assaltar as referidas instalações com a intenção de "libertar presos, o que não conseguiram". Quatro dias depois, o tom sobe e serão referidos como "cerca de cem terroristas implicados nos acontecimentos". Ficou dito que era "uma operação estudada com grande antecedência e a que não faltou, até, uma 'acção de diversão' lançada meia hora antes" e que os assaltos se verificaram "simultaneamente, a cargo de quatro grupos diferentes" mas, como a "reacção dos residentes foi tão pronta (...) não foi necessário pedir reforços".

No final do artigo desse primeiro dia fazia-se ainda um balanço inicial da revolta: "A calma é hoje absoluta em toda a cidade. Não se registaram quaisquer paralisações de trabalho e a população europeia seguiu, como em todos os fins-de-semana, para as praias dos arredores e para a Ilha de Luanda. Só as 'barrocas' e os 'muceques' foram patrulhados por soldados das Companhias Especiais de Caçadores." O Governo Geral confirmava que " os responsáveis estão já presos na maior parte", enquanto o acontecimento era descrito como "absolutamente inédito e que foi comentado por toda a gente com a natural indignação".

Esta indignação irá crescer com o massacre que acontecerá a 15 de Março, que vitimará centenas de brancos e confirmará que a guerra em África será para valer.

O modo como o DN irá divulgar nos próximos dias o que se passa em Luanda é exaustivo e terá colaborado para criar a "comoção popular", que vários portugueses ainda hoje recordam (ver entrevista ao general Chito Rodrigues). Em todas as edições dos dias seguintes, os assaltos acontecidos em Luanda a 4 de Fevereiro serão notícia de primeira página, rivalizando com o bem documentado diário de bordo no regresso do paquete Santa Maria ao cais de Alcântara, em Lisboa, momento em que o próprio governante Salazar estará presente, acompanhado do presidente Américo Tomás e sob os aplausos de milhares de populares que ali se deslocaram.

A par desse noticiário sobre Luanda, surgirão dezenas de outras notícias políticas manifestamente de contra-informação. É o caso de uma notícia secundária, estrategicamente colocada ao lado da que reportava a continuação dos incidentes em Luanda, a qual se intitulava: "O comunismo trava em África uma tríplice ofensiva nos campos político, económico e social." Ou de um texto reproduzindo um artigo no jornal britânico Times, em que se alertava para "O perigo de Portugal cair numa anarquia comunizante".

Também no Diário de Lisboa a notícia mantinha-se com impacto na primeira página. Se no dia seguinte o título informava que "Eram estrangeiros na sua maioria os componentes do grupo que assaltou as prisões de Luanda", a 7 de Fevereiro tentava-se mostrar que a normalidade regressara, ao referir que "Os bairros indígenas de Luanda foram ontem visitados pelo governador-geral de Angola que verificou ser completa a tranquilidade que ali reina".

A nível internacional, a notícia dos assaltos de 4 de Fevereiro em Luanda não poderia passar despercebida, designadamente devido ao desvio do paquete Santa Maria. É que fazia parte do plano de Henrique Galvão que, após o assalto ao navio, este navegasse para Luanda, onde era aguardado a 4 de Fevereiro por muitos jornalistas estrangeiros.

A coincidência da chegada do navio com o levantamento contra as instalações portuguesas na cidade está até hoje por explicar. Há quem refira, como Camilo Mortágua, membro do comando que desviou o navio, que não existia combinação prévia entre as partes para aquelas se beneficiarem do aparato mediático em torno da acção sobre o paquete. Mas, do lado dos revoltosos, há quem refira que a escolha da data foi de modo a aproveitar a chegada do Santa Maria e potenciar o seu efeito.

Se essa dúvida permanece, também o mesmo se verifica com a autoria do levantamento de 4 de Fevereiro de 1961, que uns reclamam para a UPA (União das Populações de Angola), enquanto outros encontram nestas acções um papel para a FNLA, de Holden Roberto, e para o próprio MPLA, que assume responsabilidades na sublevação, à qual a polícia política de Salazar ainda acrescentará a alegada liderança do cónego Manuel das Neves, que o próprio sempre negará.

Certo é que estes acontecimentos específicos do 4 de Fevereiro de 1961 serão o início da contestação à colonização portuguesa, que o regime contornará com o envio de milhares de militares para África, onde colocará os seus melhores estrategos à frente das Forças Armadas, e que erradicará pela força a quase totalidade da sublevação com a justificação de que se trata de acções policiais. Nem Salazar nem Marcelo Caetano assumirão que se trata de uma guerra, apostando antes no carácter policial de uma repressão visivelmente militar.

No entanto, os tempos de mudança na política internacional eram contra o império que Salazar e Caetano queriam manter, e serão as próprias Nações Unidas a condenar a política africana de Portugal. Entre 1960 e 1963, o organismo alertou várias vezes Portugal para a questão de se cumprir o direito de autodeterminação dos territórios sob a sua administração. Nem a eleição de John Kennedy, em Novembro de 1960, evitou o isolamento português.

João Céu e Silva, aqui