quarta-feira, 24 de novembro de 2010

JUÍZES SEM TOGA: LEIGOS CHAMADOS A ENTRAR NO PAPEL DE JULGADORES

Há 1496 juízes sociais efectivos em todo o país. São nomeados por dois anos e sentam-se lado a lado com juízes de carreira em processos tutelares educativos e de protecção de menores.

Quando aceitou sentar-se lado a lado com juízes de carreira, para decidir o futuro de crianças e jovens, Teresa Tavares tinha uma dúvida maior que todas: achava que nunca conseguiria retirar um filho aos pais. A experiência mostrou-lhe percursos de vida tão dramáticos que não tem dúvidas em pôr outros interesses acima da biologia. Percebeu que o peso de julgar é incómodo, mas não tão desmesurado como se pensa. "Precisamos de ter, acima de tudo, conhecimento da vida."

Previstos na lei desde 1978, os juízes sociais demoraram a ganhar terreno, mas hoje têm lugar inequívoco nos processos tutelares educativos e de protecção de menores. Dados do Ministério da Justiça, com base nas nomeações publicadas em Diário da República, indicam haver 1496 juízes sociais efectivos, a exercer funções em todo o país. São juízes sem toga e sem formação jurídica, a quem é pedido que levem o olhar da sociedade à sala de audiências.

Teresa está a começar o segundo mandato, Clara Gomes já vai no quarto. Tantos anos e casos depois, não hesita em classificar a experiência como muito positiva. "Vemos as coisas com olhos diferentes dos de um juiz de direito", explica. Presidente da Liga dos Amigos das Crianças do Hospital Maria Pia, está familiarizada com casos difíceis. "Isso ajuda-me quando estou no tribunal."

A carreira de professor é igualmente útil para Francisco Afonso, que há pouco mais de dois anos aceitou o desafio. A reforma deu-lhe a disponibilidade que faltava para dizer sim a uma missão que é de puro serviço público. A lei prevê ajudas de custo para os juízes sociais, mas o trabalho é por natureza gratuito. Na comarca de Sintra, Francisco Afonso descobriu existirem muito mais casos de delinquência juvenil do que imaginava. É a vida, nua e crua, que lhe passa nas mãos em forma de processo judicial.

Também a trabalhar em Sintra, Susana Mesquita é assistente social, integra uma comissão de protecção de crianças e jovens e identificou-se com a missão de juiz social. "Senti que podia dar o meu contributo." Tem sido chamada a intervir sobretudo em processos tutelares educativos - de crimes cometidos por menores de 16 anos. "As histórias de vida são muito idênticas", conta. "Por norma são jovens que vêm de famílias monoparentais, em que as mães trabalham e os miúdos crescem muito sozinhos."

Histórias de delinquência e crianças em risco abundam em zonas suburbanas como Sintra, mas não são um exclusivo de grandes cidades, acentua Teresa Tavares. Em Abrantes, já se cruzou com vidas que lhe fizeram doer a alma e lhe saem da boca em frases urgentes. Lembra-se de uma mãe com 11 filhos que nem sabia os nomes e idades de alguns. E de uma rapariga de 12 anos, que contou ao tribunal como a mãe se prostituía à frente dos filhos.

Intuições Ao contrário da maioria dos juízes sociais, em que abunda o perfil de professor, assistente social e psicólogo, Teresa é funcionária administrativa na reforma. Mas não sente que haja alguma diferença de bagagem. "Sou mulher e mãe e sou bastante intuitiva. Em tribunal, sei quase de imediato se uma pessoa está ou não a falar verdade. E infelizmente há tantas provas dadas por médicos, professores e instituições, que acaba por não haver grandes dúvidas."

Nem todas as decisões são lineares e pode falhar o consenso entre os três juízes. Embora presida e escreva o acórdão, o juiz de direito não tem voto de qualidade. É raro, mas já aconteceu juízes de carreira votarem vencidos. Francisco Afonso assegura nunca ter sentido divergências a este nível. Admite que a imagem que tinha do tribunal, como sistema fechado e punitivo, mudou. "Os juízes têm uma grande preocupação com a vertente humana e social. Quando se diz que a justiça não funciona, eu discordo: funciona e é muito humana."

Quando não funciona, acrescenta Susana Mesquita, raramente é por culpa dos magistrados. "Percebo que quando não se anda mais depressa, é por causa de todo o sistema. Com todas as regras e garantias processuais, não há forma de contornar as coisas", lamenta. Teresa Tavares concorda e diz que a carga burocrática, estando em causa menores em risco, chega a ser revoltante.

A conduzir interrogatórios, a avaliar as fronteiras e medidas da pena, um juiz de carreira pensa necessariamente de forma diferente. Sempre mais agarrado ao direito, afirma Francisco Afonso. Talvez com um olhar mais profissional, acrescenta Clara Gomes. No seu caso, admite que avalia tudo com o coração. "Nunca quererei ter um coração de aço." O que não significa ser amadora ou descuidada. Faz questão de estudar muito bem os processos e fazer o trabalho de casa. E antes de iniciar o mandato fez uma formação na Universidade Católica do Porto. "Seria importante haver mais acções de formação", alerta.

A par da qualificação, Clara Gomes destaca que só pode candidatar-se quem tem maturidade e equilíbrio psicológico. "É preciso ter estrutura psicológica para gerir as emoções." Susana Mesquita aponta a necessidade de manter o distanciamento e objectividade, mas admite que nem sempre é fácil. "Há obviamente casos que mexem connosco. No senso comum é fácil dar palpites, mas é difícil julgar. É uma responsabilidade muito grande."
 
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