quarta-feira, 6 de outubro de 2010

MOMENTOS MAQUIAVÉLICOS

A expressão "momentos maquiavélicos", que o Presidente da República usou no outro dia em Coimbra, tornou-se, depois de J. G. A. Pocock, uma expressão clássica em teoria política.

Designa o conjunto de circunstâncias em que as repúblicas se confrontam, perante uma sucessão de acontecimentos irracionais, com a imagem da sua própria finitude e com o fantasma do seu perecimento. A necessidade de uma reinvenção de valores, de que falou o Presidente, resulta daí.

Não se vê como é possível não concordar largamente com o diagnóstico. Nunca, em tempos da minha vida, a própria viabilidade de Portugal foi tão problemática como nestes dias em que somos pastoreados por essa curiosa entidade imune à verdade que, por rara infelicidade, se chama, como o filósofo, Sócrates.

A culpa é só dele? Claro que não. Mas a sua extraordinária insensibilidade à realidade, o sonhar apenas com si mesmo - coisa que ainda ontem se viu, na extravagante interpretação da República: pela "modernidade", contra os "pessimistas", etc. - foi determinante na evolução das coisas. E tivemos sorte. Noutros tempos, em vez de TGV e afins tinha-se-lhe metido na cabeça conquistar a Finlândia ou algo assim.

Cavaco falou, pois, de "reinventar valores". Que tipo de valores? Provavelmente valores que tenham a ver com a honestidade, a solidariedade social e uma visão nítida da nossa dimensão e das nossas possibilidades. Porque a complacência com a desonestidade política e a pura e simples irresponsabilidade atingiu proporções imensas, e é preciso mudar de rumo.

Porque o vocabulário da solidariedade se transformou em pura retórica partidária, e é necessário soprar para longe, na medida do nosso fôlego, o pó do verbo político pomposo e vazio. Porque se perdeu de vista o que realmente é o país, e convém prestar-lhe atenção. Talvez, tendo chegado onde chegámos, isto seja uma refundação da república. Mas não precisa de ser dramática. Basta que seja eficaz, nos faça respirar e nos evite delírios de que estamos fartos e que não podemos sustentar.

O "regresso aos princípios" de que fala o Presidente da República tem a ver com isto. Não se trata de voltar a nenhuma pureza originária (que nunca existiu), mas de buscar alguma decência na vida colectiva. "Decência" é uma palavra que vale a pena recuperar. E talvez seja possível em breve. O pequeno Maquiavel que nos governa fez, diga-se a verdade, as coisas que manda o livro.

Mentiu quando necessário, foi generoso com o que não era dele, e por aí adiante. Mas cometeu um erro. Não se lembrou que "os homens esquecem mais depressa a morte do pai que a perda do seu património". E, pior, em vez de fazer o mal todo de uma só vez, fê--lo às pinguinhas, dando-nos tempo para pensar. Está a acabar, odiado e desprezado. E nós de pantanas, à espera de melhores dias.
 
Paulo Tunhas, aqui