quinta-feira, 30 de setembro de 2010

SERÁ O DESLUMBRAMENTO UMA POLÍTICA?

Quando procuramos o traço que melhor revela hoje a incapacidade das lideranças políticas, é sem dúvida no deslumbramento que a encontramos.

Num deslumbramento que consiste numa grave perturbação da visão, seja ela provocada pela falta de distância ou por um excesso de luz. O deslumbramento é sempre a outra face de uma ofuscação, de um dogma, de uma cegueira. O deslumbrado olha, mas é incapaz de ver.

Quando hoje analisamos a crise que temos vivido nos últimos anos, percebe-se que não foi por falta de saber que não se viu o que lá vinha, mas por excesso de deslumbramento: porque o deslumbramento desvaloriza a prudência, inutiliza o conhecimento e dilui o saber.

E esta crise foi, em grande medida, a consequência de um duplo deslumbramento: com a nova finança e a sua delirante criatividade, com as novas tecnologias e as suas mirabolantes promessas, que se impuseram com uma tóxica cumplicidade.

Foi este duplo deslumbramento que cegou e manietou tanta gente. E é ainda ele que, hoje, leva muitos a pensar que será com a retoma dos factores que provocaram a crise que se sairá dela. Isso acontece porque o deslumbramento, ao desprezar o passado e ao ignorar o futuro, vive e faz viver num presente completamente virtual.

Num presente que é feito de activismo sem estratégia, colado a um imperativo de modernidade que se apresenta como um acelerador de tudo, mas que, na realidade, ninguém vislumbra ao que conduz. Ser moderno tornou-se simplesmente nisto, em ser deslumbrado!...

Daí a importância das estatísticas; elas insinuam hoje que, no universo do deslumbramento, os números são o único valor incontroverso. Elas apresentam os números como se eles garantissem a transformação instantânea da quantidade em qualidade. E falam das políticas "de resultados" como se os meios não contassem, escondendo sempre o essencial: isto é, que ao lado do significado dos números existe também a insignificância dos números. Que para lá do que eles dizem, está sempre o que eles omitem.

Os deslumbramentos financeiro e tecnológico são na verdade um só, que se revela na proclamação da modernidade como um puro fatalismo, como um processo independente das escolhas colectivas ou das decisões individuais, como se o seu objectivo fosse apenas o de tudo adequar a um processo histórico supostamente inelutável.

Compreende-se assim que o deslumbramento desmagnetize a sociedade e desvitalize a política, aproximando-nos da profecia de Jean Baudrillard, que há anos antecipou que o objectivo da classe política seria cada vez mais, não o de governar, mas o de "manter a alucinação do poder", confundindo países reais com miragens tecnológicas. O que, naturalmente, leva a que a sociedade olhe cada vez mais para tudo isto como uma - ora indiferente, ora insuportável - amálgama de palavras, de imagens e de vazio.

O deslumbramento tecnológico-financeiro tornou-se, deste modo, o grande impulsionador das principais formas de demagogia do nosso tempo, sejam as do optimismo tão virtual como pueril, sejam as do pessimismo tão nostálgico como catastrofista.

E não vejo modo mais eficaz de as contrariar do que o de uma renovada pedagogia que introduza - na vida, na política e nos media - mais conhecimento, mais diálogo e mais proximidade. E também tempo, sim, tempo, porque o curto-termismo é o carrossel de todos os deslumbrados.

Tudo isto faz cada vez mais da história o argumento, o conhecimento decisivo para contrariar os efeitos do deslumbramento e da sua demagogia. Só a história perspectiva o presente, revelando a sua contingência, mostrando que o que aconteceu podia não ter acontecido, ou ter acontecido de outra forma. Que na vida e no mundo tudo resulta sempre da conjugação da imprevisibilidade dos factos, da multiplicidade dos interesses, da diversidade dos contextos e das opções dos cidadãos. Que há sempre soluções quando há visão.

Contra a fatalidade, a história. Contra o deslumbramento, a lucidez. Contra a demagogia, a pedagogia. Contra os impasses do optimismo e do pessimismo, o realismo. Contra o curto-termismo, o médio e o longo prazo. Contra a pasmaceira, o sentido de futuro.

Eis do que precisamos, se queremos ter de novo uma finança ao serviço da economia, novas tecnologias ao lado da emancipação dos cidadãos e uma política que abra horizontes e crie de facto alternativas.

Manuel Maria Carrilho, aqui