O CIRCO ACABOU MAIS CEDO
No Circo Maravilhas, uma maravilha de circo, "a maravilha das maravilhas", como anunciava, no início de cada novo espectáculo, o seu director artístico, no Circo Maravilhas, dizíamos, são, no momento em que esta história começa, sete horas da tarde.
Sabemos que são sete horas da tarde porque o director do Circo Maravilhas acordou agora mesmo da sua prolongada sesta. O senhor Estrelinhas é sempre pontual no acordar. Ele bem sabe que são sete horas, mais segundo, menos segundo. Precisamente para saber os segundos, o senhor Estrelinha puxa, com todo o vagar, do relógio de bolso, um formosíssimo relógio de ouro, orgulho e ornato, há mais de cem anos, da família Estrelinhas.
- Foi o meu pai, o célebre director da companhia circense Estrelinhas & Estrelinhas, quem mo deu - costuma contar o senhor Estrelinhas Filho.
Vai puxando a corrente, que também é de ouro, vai puxando devagarinho, e, de súbito, a corrente acaba, sem trazer nenhum relógio atrás.
- Desapareceu o meu relógio! O meu relógio sumiu-se! Desapareceu... - grita o senhor Estrelinhas, saindo para o terreiro defronte do Circo Maravilhas.
Aos gritos do director acorda o circo e anima-se a história. Saem das suas "roulottes" o homem das forças e a mulher Labareda, também mulher do homem das forças, os malabaristas Maldonados, a domadora Dona Arábida e o domador Cola-tudo, a bailarina Cinturinha e o lutador Cinturão, os trapezistas Baptistas, os palhaços Baratinha, Barata & senhor Tomé e muito, muito mais gente. Se fosse apresentá-los um por um, era todo o cartaz da companhia, lido de trás para diante.
Juntaram-se à roda do director e perguntaram em coro, ainda ensonados:
- O que é que foi?
- Perdi o relógio de ouro - gritava-lhes o senhor Estrelinhas, de braços abertos e olhos fechados.
- Alguém o roubou - disse um dos mais ensonados.
Fez-se um grande silêncio, como se estivesse algum trapezista à beira do salto mortal. O senhor Estrelinhas, então, abriu os olhos e disse, muito zangado:
- Alguém roubou? Isso nunca. Nesta companhia, temos equilibristas, trapezistas, malabaristas, contorcionistas, antipodistas, mas não temos larapistas, isto é, larápios, rapinantes, ratoneiros, corsários, gatunos, bargantes, bandoleiros... Entendido?
À volta concordaram.
- Então foi bicho - lembrou uma voz.
- Talvez os macacos - alvitrou um dos Maldonados, que não gostava de macacos.
Opôs-se à dúvida a Dona Arábica, dona dos macacos:
- Alto lá, que os meus macacos são sérios.
Toda a gente se riu.
- Talvez fosse o avestruz - sugeriu o Baptista trapezista mais novo. - Lembra-se o senhor director de que o bicho, uma vez, foi ao seu escritório e engoliu o tinteiro, a caneta de tinta permanente e o mata-borrão?
- O mata-borrão era o guardanapo - riu-se o palhaço Baratinha.
Foi ele o único a rir, porque os outros tinham ido encostar o ouvido ao estômago do avestruz. Não conseguiram ouvir nenhum ?tique-taque". Falsa pista.
- Procurem na bolsa do canguru - exclamou a bailarina Cinturinha, num pressentimento.
Foram a correr procurar à bolsa do canguru, mas só lá encontraram um carimbo, os óculos de sol da bailarina Cinturinha, uma lata de conservas vazia e alguns bilhetes amachucados. Quanto ao relógio, nada.
Só se desfez o mistério a meio do número de Dom Fuas, ilusionista, de gestos de seda e monóculo faiscante. No preciso, precioso momento em que D. Fuas, de um baú há pouco vazio, desocupado, fazia sair o urso Osvaldo, a esfregar as patas uma na outra, a modos que a pedir palmas, calculem a surpresa. É que, desta vez, o urso Osvaldo trazia um formoso relógio de bolso, entalado num olho. Caiu, da surpresa, o monóculo ao Dom Fuas e o urso Osvaldo, vaidoso, continuou a pedir palmas.
- É o relógio do director! - gritaram vários artistas.
Nessa noite, o espectáculo acabou mais cedo.
António Torrado e Cristina Malaquias, aqui