quinta-feira, 2 de setembro de 2010

É CURTIR, VILANAGEM!

Uma socióloga francesa, Dominique Pasquier, concluiu recentemente que "uma parte importante das classes médias e superiores já não é capaz de assumir a reprodução cultural como o fazia anteriormente.

Também porque os pais não procuram enquadrar a cultura dos seus filhos". E observa ainda que, "nos anos 60, os jovens se opunham à cultura dos adultos. Eram os movimentos de contracultura. Ou construíam subculturas que eram rebeldes ao mesmo tempo à cultura dominante e à cultura parental (…). Mas, na maior parte dos casos, esses jovens recuperavam mais tarde uma parte da herança cultural familiar. Hoje já não se assiste ao mesmo esquema: não se está no conflito de gerações, mas antes num esquema de justaposição em que os jovens têm uma cultura e os adultos têm outra. E o que caracteriza efectivamente a primeira é que ela não vai de todo buscar as suas referências culturais nas heranças do passado e que não se situa na oposição às culturas parentais".

Este é um bom indicador de que à situação de conflito de gerações de que falávamos até há poucas décadas sucedeu uma situação de verdadeira e preocupante indiferença entre as gerações. Onde, antes, os filhos contestavam as posições dos pais, vindo, mais tarde, a recuperar muito daquilo que anteriormente punham em questão, agora, de um modo geral, deixou de haver uma tensão dialéctica dessa natureza para passar a haver uma indiferença pura e simples. Nem aos filhos interessam as preferências culturais dos progenitores, nem estes se preocupam muito com as opções e consumos culturais da descendência (quando muito, deixam-se ir atrás dos filhos, macaqueando-lhes os trejeitos a fingir que são da mesma idade). Gera-se uma perigosa estanquicidade entre as gerações e as respectivas maneiras de ver o mundo. A uma situação cuja dinâmica ao longo de séculos e séculos se vinha processando na vertical das gerações sucede uma situação de mimetismos comportamentais numa horizontal confinada à actualidade mais recente.

Este facto é novo e significa que está em risco uma dimensão essencial da nossa identidade nacional e europeia que se prende com a transmissão por via transgeracional dos bens e valores culturais. Esse baluarte não pode deixar de existir e de se consolidar para evitar a diluição, ou mesmo a perda da identidade, num mundo globalizado e à mercê da padronização de tudo pelo nível mais baixo da banalidade. Se essa passagem transgeracional de valores materiais e imateriais da cultura está em risco, em sério risco fica também todo o imenso património em que nos reconhecemos e que nos explica e impulsiona. Iça em sério risco de se perder naquilo em que pode e deve ser mais actuante: na sua projecção activa nas mentalidades e nas atitudes colectivas e individuais. E fica ainda em sério risco uma dimensão humanista da vida. Sendo exactamente neste ponto que cultura e cidadania se tocam, nesse caso ficaria sem solução o segundo dos problemas fundamentais que D. António Ferreira Gomes enunciava assim, na sua célebre carta a Salazar de 1958: "Seja qual for o conforto ou riqueza que se atribuam a um indivíduo ou a uma classe, nunca eles estarão satisfeitos enquanto não experimentarem que são colaboradores efectivos, que têm a sua justa quota parte na condução da vida colectiva, isto é, que são sujeito e não objecto na vida económica, social e política." Esse desiderato é manifestamente impossível sem a dimensão essencial da democracia que é a cultura.

Portugal propõe-se ao mundo como parte significativa de uma Europa fandanga, analfabeta, periférica e calaceira que teve a sorte de entrar para a União Europeia convencida de que tinha pilhado mais uma galinha dos ovos de ouro, a seguir à Índia do século XVI e ao Brasil do século XVIII. Nesta franja europeia que somos, sem outro sentido que não o do far niente à custa do Estado e/ou de Bruxelas, estamos a realizar o divórcio mais fundo de que há memória entre as gerações e não só entre as gerações: os jovens nem querem saber das instituições do Estado e da vida civil, da autoridade democrática ou das qualificações seriamente obtidas nem, provavelmente, cuidam que essas realidades existem. Só lhes passa pela cabeça, como única preocupação, a conjugação de um verbo que aprenderam nas séries brasileiras: "Curtir". E aí, a geração anterior, grande responsável política e educativa por esse estado de coisas, deu logo em imitá-los… É curtir, vilanagem!

Vasco Graça Moura, aqui