quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A DEMOCRACIA AGREDIDA

Durante alguns anos embalámos a sensação, um pouco vaga, levemente indeterminada, de que a Justiça não só era justa como velava por nós.

Os malvados eram punidos e os justos protegidos. A harmonia que este pressuposto comportava justificava a circunstância de nem sequer nos preocuparmos. Desconhecíamos os nomes e os rostos daqueles que vigiavam pela segurança de todos. Pessoas de carácter impoluto que não apenas faziam cumprir as leis como defendiam a grandeza e a decência democráticas. O festim da confiança durou pouco. Tratava-se, afinal, de um sentimento que pertencia aos domínios da fé.

Sou do tempo em que a magistratura era o mimetismo arrogante do poder fascista. E assisti, em tribunais plenários, às mais repulsivas misérias morais, cometidas por "juízes" que compunham medonhas caricaturas da nobreza e da honra. Nunca foram julgados nem castigados. Aliás, depois de condenarem presos políticos a penas pesadíssimas, adicionadas a "medidas de segurança", que significavam, praticamente, prisão por tempo indeterminado, esses senhores iam tomar chá à Bénard ou à Ferrari, ou entravam na Bertrand para saber das novidades literárias. Tranquilamente, sem sobressaltos de consciência. Morreram no leito da serenidade, com reformas substanciais.

As coisas melhoraram, com o 25 de Abril? Superficialmente. A mentalidade de retábulo de eleitos não sofreu alterações: as características de domínio corporativo mantêm-se. Ainda não chegámos à "democracia de juízes", como ocorreu, por exemplo, em Itália. Mas caminhamos para uma interpretação perigosa do que a Justiça pode ser. Abrem-se as veredas a uma sociedade de incertezas, que fará a erosão dos mecanismos e dos princípios democráticos. Não duvidemos das graves ameaças que pesam sobre nós.

Esta beligerância activa entre o procurador-geral da República, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e Cândida Almeida comporta a hipótese de uma continuidade perturbadora. E resulta das velhas malformações existentes na Justiça. As virtualidades estruturais, intrínsecas ao nosso sistema, deixaram de existir, ou nunca existiram, e deram lugar a excrescências malignas, que se desenvolvem em todos os aparelhos judiciais e jurídicos. Estas anomalias irão dilatar-se no tempo, com tal extensão, que podem facilitar novas amolgadelas na democracia portuguesa, cada vez mais amassada?

Em Portugal acredita-se muito pouco nas instituições. Ninguém abona ninguém. Uma desconfiança generalizada das populações, na honestidade e na "independência" de quem devia estar acima de toda a suspeita, está a abalar a própria credibilidade da democracia. Como nada acontece por acaso, a quem aproveita a situação?

Batista-Bastos, aqui